terça-feira, 30 de junho de 2009

Troco para 50

(Selton Mello como Lourenço no filme "O Cheiro do Ralo", Brasil, 2007)
.
“- Daqui há 20 anos, a minha maior pretensão é continuar vivo. Espero que nenhuma bala perdida me ache, que nenhum mal me faça beijar a lona, que meus orixás permaneçam em vigília, que eu continue podendo fazer o que amo, atuando ou dirigindo, que o casamento com o cinema não esteja desgastado por tantos anos de convivência. Se, no fim, nada disso der certo, eu me dirijo a um guichê na rodoviária e peço: 'Moça, me vê uma passagem para junho de 2009, que quero saborear aquilo com olhos livres. Tem troco para 50?' ”.
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(Epifânica declaração de Selton Mello ao repórter André Miranda, em matéria intitulada "Tri Ator" publicada no O Globo Online em 30.jun.09)
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Detalhe: Selton Mello hoje tem 36 anos de idade. Daqui há 20... terá 50 e uns trocados.

Troco para 50

(Selton Mello como Lourenço no filme "O Cheiro do Ralo", Brasil, 2007)
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“- Daqui há 20 anos, a minha maior pretensão é continuar vivo. Espero que nenhuma bala perdida me ache, que nenhum mal me faça beijar a lona, que meus orixás permaneçam em vigília, que eu continue podendo fazer o que amo, atuando ou dirigindo, que o casamento com o cinema não esteja desgastado por tantos anos de convivência. Se, no fim, nada disso der certo, eu me dirijo a um guichê na rodoviária e peço: 'Moça, me vê uma passagem para junho de 2009, que quero saborear aquilo com olhos livres. Tem troco para 50?' ”.
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(Epifânica declaração de Selton Mello ao repórter André Miranda, em matéria intitulada "Tri Ator" publicada no O Globo Online em 30.jun.09)
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Detalhe: Selton Mello hoje tem 36 anos de idade. Daqui há 20... terá 50 e uns trocados.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Lugares Vagos

(Fotografia de Caio Paganotti, “Na Multidão”, Zombie Walk, São Paulo, 2008)

Há muito tempo não pegava o metrô para ir ao trabalho. Para mim, o carro é muito mais do que um meio de transporte: é um templo, um refúgio, um abrigo; mas naquele dia, considerando a programação after work, achei por bem deixar Tchury em casa e fazer uso do bom e velho táxi como providência para um regresso seguro.
.
No balanço do vagão, segui confortável na companhia de Duras e seu amante chinês de Cholen até a estação da Praça Onze, quando percebi, em meio a tantas pessoas que se esbarravam para entrar e sair da composição, a chegada de um casal que se destacou da multidão aos meus olhos. Era um casal não-casal. Deviam ter mais de 70 anos. Andavam a certa distância. Não se falavam. Mal se olhavam. Ele se apoiou na porta do vagão com a cabeça baixa. Ela em uma das cadeiras, com o olhar altivo. Não demorou muito e alguém ofereceu o assento ao senhor de cabeça baixa. Ele agradeceu, disse que não demoraria a saltar, mas gentilmente se dirigiu à senhora e perguntou: “Doca, quer sentar?”.
.
Não, ela não queria sentar. Talvez quisesse mais do que isso, talvez nem tanto, mas naquele momento conformou-se em rechaçá-lo: “Você está louco em me chamar de ‘Doca’? Acha que eu dou intimidade a qualquer um para me chamar desse jeito?”.
.
Constrangido o homem se voltou para mim e murmurou: “Não repara, não. Ela é assim mesmo”; voltando a cabeça para baixo enquanto a mulher sorria ironicamente pelas suas costas - talvez sugerindo um caráter espirituoso para a sua atuação; talvez buscando alguma cumplicidade com o público que assistia ao bizarro espetáculo.
.
Subitamente interessada pelo que se passava ali, respondi ao homem resignado: “Por mim não se preocupe. Cada um tem o seu jeito mesmo”, e sem esboçar qualquer reação o homem se manteve estático junto à porta do vagão, cabisbaixo, olhar perdido, permanecendo naquele lugar onde o desejo da mulher lhe suplicava: longe.
.
Com a saída dos passageiros na Central do Brasil e a liberação de algumas cadeiras, o homem que antes recusara o assento oferecido por um jovem rapaz, agora se antecipava para sentar em um dos lugares vagos junto à porta. A mulher que o acompanhava imediatamente buscou um assento junto a ele. Olhou-o com curiosidade, como se esperasse alguma provocação, alguma palavra, alguma atenção, algum contato, algum afeto, algum olhar, que não veio. O homem se manteve em silêncio olhando para o chão. Ela ficou aliviada, quase feliz.
.
Ao chegar à estação da Uruguaiana o homem se levantou pacificamente e, sem olhar para trás, partiu. A mulher rapidamente se levantou para acompanhá-lo. Partiram juntos. Cúmplices. Ausentes. No silêncio fecundo daquela manhã fria. Na árida calma daqueles corpos sonolentos. Quase felizes.

Lugares Vagos

(Fotografia de Caio Paganotti, “Na Multidão”, Zombie Walk, São Paulo, 2008)

Há muito tempo não pegava o metrô para ir ao trabalho. Para mim, o carro é muito mais do que um meio de transporte: é um templo, um refúgio, um abrigo; mas naquele dia, considerando a programação after work, achei por bem deixar Tchury em casa e fazer uso do bom e velho táxi como providência para um regresso seguro.
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No balanço do vagão, segui confortável na companhia de Duras e seu amante chinês de Cholen até a estação da Praça Onze, quando percebi, em meio a tantas pessoas que se esbarravam para entrar e sair da composição, a chegada de um casal que se destacou da multidão aos meus olhos. Era um casal não-casal. Deviam ter mais de 70 anos. Andavam a certa distância. Não se falavam. Mal se olhavam. Ele se apoiou na porta do vagão com a cabeça baixa. Ela em uma das cadeiras, com o olhar altivo. Não demorou muito e alguém ofereceu o assento ao senhor de cabeça baixa. Ele agradeceu, disse que não demoraria a saltar, mas gentilmente se dirigiu à senhora e perguntou: “Doca, quer sentar?”.
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Não, ela não queria sentar. Talvez quisesse mais do que isso, talvez nem tanto, mas naquele momento conformou-se em rechaçá-lo: “Você está louco em me chamar de ‘Doca’? Acha que eu dou intimidade a qualquer um para me chamar desse jeito?”.
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Constrangido o homem se voltou para mim e murmurou: “Não repara, não. Ela é assim mesmo”; voltando a cabeça para baixo enquanto a mulher sorria ironicamente pelas suas costas - talvez sugerindo um caráter espirituoso para a sua atuação; talvez buscando alguma cumplicidade com o público que assistia ao bizarro espetáculo.
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Subitamente interessada pelo que se passava ali, respondi ao homem resignado: “Por mim não se preocupe. Cada um tem o seu jeito mesmo”, e sem esboçar qualquer reação o homem se manteve estático junto à porta do vagão, cabisbaixo, olhar perdido, permanecendo naquele lugar onde o desejo da mulher lhe suplicava: longe.
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Com a saída dos passageiros na Central do Brasil e a liberação de algumas cadeiras, o homem que antes recusara o assento oferecido por um jovem rapaz, agora se antecipava para sentar em um dos lugares vagos junto à porta. A mulher que o acompanhava imediatamente buscou um assento junto a ele. Olhou-o com curiosidade, como se esperasse alguma provocação, alguma palavra, alguma atenção, algum contato, algum afeto, algum olhar, que não veio. O homem se manteve em silêncio olhando para o chão. Ela ficou aliviada, quase feliz.
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Ao chegar à estação da Uruguaiana o homem se levantou pacificamente e, sem olhar para trás, partiu. A mulher rapidamente se levantou para acompanhá-lo. Partiram juntos. Cúmplices. Ausentes. No silêncio fecundo daquela manhã fria. Na árida calma daqueles corpos sonolentos. Quase felizes.

domingo, 28 de junho de 2009

Bláblábláblá...

(Lobão no lançamento do CD Elétrico, no Circo Voador, em 27.jun.09)

Enquanto a Mega-Sena não vem... blá, blá, blá, blá, eu te amo.

"Reconheço que ela
Me deixa inseguro
Sou louco por ela
E não sei o que falar
O que eu quero é que
Ela quebre a minha rotina
Que fique comigo
E deseje me amar...

Não dá para controlar
Não dá!
Não dá prá planejar
Eu ligo o rádio
E blá, blá
Blá, blá, blá, blá
Eu te amo"

(Trecho da música "Rádio Blá", de Lobão, Arnaldo Brandão e Tavinho Paes)

Bláblábláblá...

(Lobão no lançamento do CD Elétrico, no Circo Voador, em 27.jun.09)

Enquanto a Mega-Sena não vem... blá, blá, blá, blá, eu te amo.

"Reconheço que ela
Me deixa inseguro
Sou louco por ela
E não sei o que falar
O que eu quero é que
Ela quebre a minha rotina
Que fique comigo
E deseje me amar...

Não dá para controlar
Não dá!
Não dá prá planejar
Eu ligo o rádio
E blá, blá
Blá, blá, blá, blá
Eu te amo"

(Trecho da música "Rádio Blá", de Lobão, Arnaldo Brandão e Tavinho Paes)

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Too Soon

(Foto: divulgação. Michael Jackson, 1958-2009)

Gone Too Soon
(Michael Jackson)

Like a comet blazing
'Cross the evening sky
Gone too soon

Like a rainbow
Fading in the twinkling of an eye
Gone too soon

Shiny and sparkly
And splendidly bright
Here one day
Gone one night

Like the loss of sunlight
On a cloudy afternoon
Gone too soon

Like a castle
Built upon a sandy beach
Gone too soon

Like a perfect flower
That is just beyond your reach
Gone too soon

Born to amuse, to inspire, to delight
Here one day
Gone one night

Like a sunset
Dying with the rising of the moon
Gone too soon

Gone too soon...

.....................................................................................

Foi Muito Cedo

Como um cometa
Resplandecendo pelo céu da noite
Foi muito cedo

Como um arco-íris
Desmanchando num piscar de olhos
Foi muito cedo

Luminoso e reluzente
E esplendidamente brilhante
Aqui um dia
Foi numa noite

Como a perda da luz do sol
Numa tarde nublada
Foi muito cedo

Como um castelo de areia
Construído na praia
Foi muito cedo

Como uma flor perfeita
Que está fora do seu alcance
Foi muito cedo

Nascido para divertir, inspirar, encantar
Aqui um dia
Foi numa noite

Como um pôr-do-sol
Morrendo com o nascer da lua
Foi muito cedo

Foi muito cedo...

Too Soon

(Foto: divulgação. Michael Jackson, 1958-2009)

Gone Too Soon
(Michael Jackson)

Like a comet blazing
'Cross the evening sky
Gone too soon

Like a rainbow
Fading in the twinkling of an eye
Gone too soon

Shiny and sparkly
And splendidly bright
Here one day
Gone one night

Like the loss of sunlight
On a cloudy afternoon
Gone too soon

Like a castle
Built upon a sandy beach
Gone too soon

Like a perfect flower
That is just beyond your reach
Gone too soon

Born to amuse, to inspire, to delight
Here one day
Gone one night

Like a sunset
Dying with the rising of the moon
Gone too soon

Gone too soon...

.....................................................................................

Foi Muito Cedo

Como um cometa
Resplandecendo pelo céu da noite
Foi muito cedo

Como um arco-íris
Desmanchando num piscar de olhos
Foi muito cedo

Luminoso e reluzente
E esplendidamente brilhante
Aqui um dia
Foi numa noite

Como a perda da luz do sol
Numa tarde nublada
Foi muito cedo

Como um castelo de areia
Construído na praia
Foi muito cedo

Como uma flor perfeita
Que está fora do seu alcance
Foi muito cedo

Nascido para divertir, inspirar, encantar
Aqui um dia
Foi numa noite

Como um pôr-do-sol
Morrendo com o nascer da lua
Foi muito cedo

Foi muito cedo...

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Relançando o desejo

(Fotografia de Murat Harmanalikli, Turquia, 2007)

.
Se depois do sorteio não houver mais atualização nesse blog... já sabe.

Relançando o desejo

(Fotografia de Murat Harmanalikli, Turquia, 2007)

.
Se depois do sorteio não houver mais atualização nesse blog... já sabe.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Beijo na Boca

(Fotografia de Natan Marques, Porto Alegre, 2005)

“O céu azul celeste. As ilhas, mesmo, lá embaixo. E da cabine posso vê-las, que lindas, Pedra Lume, São Nicolau... David traz chá de camomila, Manuela, um travesseiro e mantas para eu me enrolar inteira, Helena, gravações dos seus ensaios cantando árias do século dezoito para eu ouvir nos fones. Aposto que se pedisse um termômetro, eles teriam. Mas não peço nada, o que mais posso querer? Beijo na boca?"
.
(Adriana Calcanhotto in "Saga Lusa, O Relato de uma Viagem". Rio de Janeiro: Cobogó, 2008, p. 147)

Beijo na Boca

(Fotografia de Natan Marques, Porto Alegre, 2005)

“O céu azul celeste. As ilhas, mesmo, lá embaixo. E da cabine posso vê-las, que lindas, Pedra Lume, São Nicolau... David traz chá de camomila, Manuela, um travesseiro e mantas para eu me enrolar inteira, Helena, gravações dos seus ensaios cantando árias do século dezoito para eu ouvir nos fones. Aposto que se pedisse um termômetro, eles teriam. Mas não peço nada, o que mais posso querer? Beijo na boca?"
.
(Adriana Calcanhotto in "Saga Lusa, O Relato de uma Viagem". Rio de Janeiro: Cobogó, 2008, p. 147)

terça-feira, 23 de junho de 2009

Debaixo das pálpebras

(Natasha Bakht in Triptych Self fotografada por David Hou, Londres, 2005)
.
“Ela não teria dito nada, não teria olhado nada. Diante do homem sentado no corredor escuro, encerrou-se debaixo das pálpebras. Através delas vê transparecer a luz emaranhada do céu. Sabe que ele a olha, que ele vê tudo. Sabe isso de olhos fechados, assim como o sei eu, eu que olho. Trata-se de uma certeza.
(...)
O homem ainda teria esperado.
E então ela teria conseguido. Tamanha é a força do sol que para suportá-la ela grita. Morde a região do braço já rasgada do vestido e grita. Chama um nome. E que venha”.
.
(Marguerite Duras, O Homem Sentado no Corredor in “O Homem Sentado no Corredor; A Doença da Morte”. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 14 e 18)

Debaixo das pálpebras

(Natasha Bakht in Triptych Self fotografada por David Hou, Londres, 2005)
.
“Ela não teria dito nada, não teria olhado nada. Diante do homem sentado no corredor escuro, encerrou-se debaixo das pálpebras. Através delas vê transparecer a luz emaranhada do céu. Sabe que ele a olha, que ele vê tudo. Sabe isso de olhos fechados, assim como o sei eu, eu que olho. Trata-se de uma certeza.
(...)
O homem ainda teria esperado.
E então ela teria conseguido. Tamanha é a força do sol que para suportá-la ela grita. Morde a região do braço já rasgada do vestido e grita. Chama um nome. E que venha”.
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(Marguerite Duras, O Homem Sentado no Corredor in “O Homem Sentado no Corredor; A Doença da Morte”. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 14 e 18)

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Falha súbita

(Fotografia de Missy Gaido Allen, Bed, EUA, 1998)

“Você deveria não conhecê-la, você deveria tê-la encontrado por toda a parte ao mesmo tempo, num hotel, numa rua, num trem, num bar, num livro, num filme, em você mesmo, em você, ao léu do teu sexo ereto na noite clamando por um lugar onde se meter, onde se desvencilhar do choro que o enche.
(...)
Às vezes você caminha pelo quarto em torno da cama ou ao longo das paredes que dão para o mar.
Às vezes você chora.
Às vezes você sai para a varanda no frio nascente.
.
Você não sabe o que contém o sono daquela que está ali na cama.
.
Desse corpo você queria ir embora, você queria retornar para o corpo dos outros, ao teu, retornar para você mesmo e ao mesmo tempo é por dever fazer isso que você chora.
(...)
Você pergunta como o sentimento de amar poderia sobrevir. Ela lhe responde: Talvez de uma falha súbita na lógica do universo. Ela diz: Por exemplo, de um erro. Ela diz: jamais de um querer.
(...)
Um dia ela não está mais ali. Você acorda e ela não está mais ali. Ela se foi na noite. O rastro do corpo ainda está nos lençóis, o rastro é frio.
(...)
Não há mais nada no quarto além de você sozinho. O corpo dela desapareceu. A diferença entre ela e você se confirma pela sua ausência súbita.
(...)
Ela não voltará nunca.
Na noite em que ela se foi, num bar, você conta a história. Primeiro você a conta como se fosse possível fazer isso, e depois você desiste. Em seguida você a conta rindo como se fosse impossível que ela tenha ocorrido ou como se fosse possível que você a tivesse inventando.
(...)
Quando você chorou, era só por você e não pela admirável impossibilidade de chegar até ela através da diferença que os separa.
.
De toda a história você retém certas palavras que ela disse durante o sono, essas palavras que dizem aquilo que você tem: Doença da morte.
.
Bem depressa você desiste, você já não a procura, nem na cidade, nem na noite, nem no dia.
.
Assim, no entanto, você pôde viver esse amor do único jeito que era lhe possível, perdendo-o antes que ele acontecesse”.
.
(Marguerite Duras, A Doença da Morte in “O Homem Sentado no Corredor; A Doença da Morte”. São Paulo: Cosac Naify, 2007)

Falha súbita

(Fotografia de Missy Gaido Allen, Bed, EUA, 1998)

“Você deveria não conhecê-la, você deveria tê-la encontrado por toda a parte ao mesmo tempo, num hotel, numa rua, num trem, num bar, num livro, num filme, em você mesmo, em você, ao léu do teu sexo ereto na noite clamando por um lugar onde se meter, onde se desvencilhar do choro que o enche.
(...)
Às vezes você caminha pelo quarto em torno da cama ou ao longo das paredes que dão para o mar.
Às vezes você chora.
Às vezes você sai para a varanda no frio nascente.
.
Você não sabe o que contém o sono daquela que está ali na cama.
.
Desse corpo você queria ir embora, você queria retornar para o corpo dos outros, ao teu, retornar para você mesmo e ao mesmo tempo é por dever fazer isso que você chora.
(...)
Você pergunta como o sentimento de amar poderia sobrevir. Ela lhe responde: Talvez de uma falha súbita na lógica do universo. Ela diz: Por exemplo, de um erro. Ela diz: jamais de um querer.
(...)
Um dia ela não está mais ali. Você acorda e ela não está mais ali. Ela se foi na noite. O rastro do corpo ainda está nos lençóis, o rastro é frio.
(...)
Não há mais nada no quarto além de você sozinho. O corpo dela desapareceu. A diferença entre ela e você se confirma pela sua ausência súbita.
(...)
Ela não voltará nunca.
Na noite em que ela se foi, num bar, você conta a história. Primeiro você a conta como se fosse possível fazer isso, e depois você desiste. Em seguida você a conta rindo como se fosse impossível que ela tenha ocorrido ou como se fosse possível que você a tivesse inventando.
(...)
Quando você chorou, era só por você e não pela admirável impossibilidade de chegar até ela através da diferença que os separa.
.
De toda a história você retém certas palavras que ela disse durante o sono, essas palavras que dizem aquilo que você tem: Doença da morte.
.
Bem depressa você desiste, você já não a procura, nem na cidade, nem na noite, nem no dia.
.
Assim, no entanto, você pôde viver esse amor do único jeito que era lhe possível, perdendo-o antes que ele acontecesse”.
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(Marguerite Duras, A Doença da Morte in “O Homem Sentado no Corredor; A Doença da Morte”. São Paulo: Cosac Naify, 2007)

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Quase

(Fotografia de Martha Boxley, Brief Encounters Project, Londres, 2008)

"A vida oblíqua? Bem sei que há um desencontro leve entre as coisas, elas quase se chocam, há um desencontro entre os seres que se perdem uns aos outros entre palavras que quase não dizem mais nada. Mas quase nos entendemos nesse leve desencontro, nesse quase que é a única forma de suportar a vida em cheio, pois um encontro brusco face a face com ela nos assustaria, espaventaria os seus delicados fios de teia de aranha. Nós somos de soslaio para não comprometer o que pressentimos de infinitamente outro nessa vida de que te falo".
.
(Clarice Lispector, Água Viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1973, p. 64)

Quase

(Fotografia de Martha Boxley, Brief Encounters Project, Londres, 2008)

"A vida oblíqua? Bem sei que há um desencontro leve entre as coisas, elas quase se chocam, há um desencontro entre os seres que se perdem uns aos outros entre palavras que quase não dizem mais nada. Mas quase nos entendemos nesse leve desencontro, nesse quase que é a única forma de suportar a vida em cheio, pois um encontro brusco face a face com ela nos assustaria, espaventaria os seus delicados fios de teia de aranha. Nós somos de soslaio para não comprometer o que pressentimos de infinitamente outro nessa vida de que te falo".
.
(Clarice Lispector, Água Viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1973, p. 64)

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Essência

(Fotografia de Amy-Sha, wedding photographer, Manchester, Reino Unido)

Estava em viagem. Havia preparativos para uma nova viagem em breve. Uma festa aconteceria em outro lugar, talvez um casamento. Passava pelas lojas da cidade pensando em comprar alguns detalhes, mas ainda não sabia o quê. A certeza de poder comprar com o próprio dinheiro era a única que tinha. E o que mais importava àquela altura.

Em uma das lojas avistou perfumes. Pensou que como já tinha o seu talvez não precisasse de outro, mas decidiu comprar um novo mesmo assim. Sentiu a fragrância de alguns deles e um em especial lhe chamou a atenção, o Infinity, mas achou muito doce. Preferiu outro, o Parfum de Femme, que, apesar do nome lhe parecer bem demodée, custava o mesmo preço do primeiro e tinha um aroma bem mais suave e agradável. Bem possível usar por toda a vida - pensou -, apesar de não ser infinito.

Comprou o perfume, mas a dúvida persistia. Agora pensava se realmente deveria ter gasto dinheiro com aquilo, se não teria comprado à toa, mas logo se lembrou de como o perfume estava barato – vinte e três moedas daquele lugar –, e o quanto ficara feliz por ter conquistado aquela nova essência.

Seguiu caminho e em uma loja adiante observou que anéis, colares e outros adornos eram ofertados gratuitamente em um tabuleiro – “graciosamente” foi a palavra que lhe veio à mente naquele instante. Aproximou-se do balcão e encantou-se com os anéis. Havia peças muito bonitas, mas receou se deveria pegá-las, se agiria corretamente ao aceitar a oferta, mas logo percebeu que não havia nada de errado nisso, uma vez que as prendas eram dadas de graça - e com graça -, e em como estava feliz com aquele presente, que, apesar de não precisar, já lhe fazia falta.

Levou-os consigo e passou a procurar por pai e filho para seguirem viagem.

Chegaram a um porto. Era noite. O medo de embarcar lhe assaltou. Não sabe ao certo do quê, talvez medo de morrer. Carregava as sacolas de valor, mas só naquele instante se deu conta de que havia esquecido de trazer consigo o vestido para a festa. Por um momento percebeu que a gravata do pai estava suja. Procurou uma solução, mas não encontrou nenhuma. Muitas pessoas se agitavam no convés e, descobrindo-se viva, teve medo de perder o que havia conquistado até ali.

Soube, então, que ainda teria muito trabalho pela frente.
E que precisaria cuidar bem do que é seu.

Essência

(Fotografia de Amy-Sha, wedding photographer, Manchester, Reino Unido)

Estava em viagem. Havia preparativos para uma nova viagem em breve. Uma festa aconteceria em outro lugar, talvez um casamento. Passava pelas lojas da cidade pensando em comprar alguns detalhes, mas ainda não sabia o quê. A certeza de poder comprar com o próprio dinheiro era a única que tinha. E o que mais importava àquela altura.

Em uma das lojas avistou perfumes. Pensou que como já tinha o seu talvez não precisasse de outro, mas decidiu comprar um novo mesmo assim. Sentiu a fragrância de alguns deles e um em especial lhe chamou a atenção, o Infinity, mas achou muito doce. Preferiu outro, o Parfum de Femme, que, apesar do nome lhe parecer bem demodée, custava o mesmo preço do primeiro e tinha um aroma bem mais suave e agradável. Bem possível usar por toda a vida - pensou -, apesar de não ser infinito.

Comprou o perfume, mas a dúvida persistia. Agora pensava se realmente deveria ter gasto dinheiro com aquilo, se não teria comprado à toa, mas logo se lembrou de como o perfume estava barato – vinte e três moedas daquele lugar –, e o quanto ficara feliz por ter conquistado aquela nova essência.

Seguiu caminho e em uma loja adiante observou que anéis, colares e outros adornos eram ofertados gratuitamente em um tabuleiro – “graciosamente” foi a palavra que lhe veio à mente naquele instante. Aproximou-se do balcão e encantou-se com os anéis. Havia peças muito bonitas, mas receou se deveria pegá-las, se agiria corretamente ao aceitar a oferta, mas logo percebeu que não havia nada de errado nisso, uma vez que as prendas eram dadas de graça - e com graça -, e em como estava feliz com aquele presente, que, apesar de não precisar, já lhe fazia falta.

Levou-os consigo e passou a procurar por pai e filho para seguirem viagem.

Chegaram a um porto. Era noite. O medo de embarcar lhe assaltou. Não sabe ao certo do quê, talvez medo de morrer. Carregava as sacolas de valor, mas só naquele instante se deu conta de que havia esquecido de trazer consigo o vestido para a festa. Por um momento percebeu que a gravata do pai estava suja. Procurou uma solução, mas não encontrou nenhuma. Muitas pessoas se agitavam no convés e, descobrindo-se viva, teve medo de perder o que havia conquistado até ali.

Soube, então, que ainda teria muito trabalho pela frente.
E que precisaria cuidar bem do que é seu.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

(Fotografia de Phil Douglis, Kamchatka, Russia, 2002)

"O sol estava se pondo. O por-de-sol a fez lembrar-se do seu pai. Ela começou a falar. Ele estava muito enfermo, mortalmente enfermo e sabia disso. Ela abandonou o seu trabalho para estar com ele. E conversavam sobre a morte próxima. Tranquilamente. Disse-me que a hora que seu pai mais amava era o crepúsculo. Desde menina. Ele se assentava com ela e ia mostrando a beleza das nuvens incendiadas, a progressiva e rápida sucessão das cores, azul, verde, amarelo, abóbora, vermelho, roxo... À medida em que o tempo passava ele ficava cada vez mais fraco. Fraco, queria sempre ver o por-de-sol. Um homem a morrer é um sol a se por. Numa dessas tardes ela não conseguiu conter as lágrimas. Chorou. Ele a abraçou e colocou seu dedo sobre os seus lábios. 'Não quero que você chore...' E apontando para o sol que se punha disse: 'Eu estarei lá...' Sei que não reproduzi com fidelidade o que ela me disse. O seu relato foi imensamente mais rico, cheio de detalhes, de saudade, de tristeza e de beleza. Por isso eu lhe peço perdão. Mas senti que ela era agradecida pelo tempo que passou com o pai. A morte cria uma intimidade que é impossível em outras situações. E contou-me também de uma orquídea que silenciosamente acompanhou esses momentos de despedida. A orquídea, depois que seu pai partiu para o por-de-sol, se recusou a parar de florir...Será que as pessoas queridas que partem continuam a morar no perfume das flores? É possível... ".

(Rubem Alves, Trecho de Quarto de Badulaques XXXI no site "A casa de Rubem Alves", acesso em 04.jun.09)

(Fotografia de Phil Douglis, Kamchatka, Russia, 2002)

"O sol estava se pondo. O por-de-sol a fez lembrar-se do seu pai. Ela começou a falar. Ele estava muito enfermo, mortalmente enfermo e sabia disso. Ela abandonou o seu trabalho para estar com ele. E conversavam sobre a morte próxima. Tranquilamente. Disse-me que a hora que seu pai mais amava era o crepúsculo. Desde menina. Ele se assentava com ela e ia mostrando a beleza das nuvens incendiadas, a progressiva e rápida sucessão das cores, azul, verde, amarelo, abóbora, vermelho, roxo... À medida em que o tempo passava ele ficava cada vez mais fraco. Fraco, queria sempre ver o por-de-sol. Um homem a morrer é um sol a se por. Numa dessas tardes ela não conseguiu conter as lágrimas. Chorou. Ele a abraçou e colocou seu dedo sobre os seus lábios. 'Não quero que você chore...' E apontando para o sol que se punha disse: 'Eu estarei lá...' Sei que não reproduzi com fidelidade o que ela me disse. O seu relato foi imensamente mais rico, cheio de detalhes, de saudade, de tristeza e de beleza. Por isso eu lhe peço perdão. Mas senti que ela era agradecida pelo tempo que passou com o pai. A morte cria uma intimidade que é impossível em outras situações. E contou-me também de uma orquídea que silenciosamente acompanhou esses momentos de despedida. A orquídea, depois que seu pai partiu para o por-de-sol, se recusou a parar de florir...Será que as pessoas queridas que partem continuam a morar no perfume das flores? É possível... ".

(Rubem Alves, Trecho de Quarto de Badulaques XXXI no site "A casa de Rubem Alves", acesso em 04.jun.09)

terça-feira, 2 de junho de 2009

Letra

(Fotografia de Howard Schatz, Ornstein Studio, An Intimate Alphabet, 1996, capturando a marca do efe. Do falo, da fala. De Freud)
..
“Jean Allouch afirma que o luto freudiano é melancólico, que Freud ‘oferece ao enlutado a louca esperança de um reencontro do objeto perdido’...[14]: o objeto substituído. Não se pode reduzir o luto a um trabalho, ‘devemos tomá-lo no nível do ato, da perda seca onde já não há nenhuma compensação. Deixar o morto à sua morte’. Há em Freud e Lacan vigor e atualidade. Temos de atravessar qualquer ilusão de eleição para que tomemos do morto o legado que é sua letra. Já não se trata de encontrá-lo no deserto, nós o encontraremos em seu lugar na psicanálise”.
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(Abílio Ribeiro Alves. Trecho "Do luto e da transmissão" in Opinião Acadêmica, Rio de Janeiro, n.º 376, 2004, apud Jean Allouch. Erótica do luto no tempo da morte seca. RJ: Cia. de Freud, 2004, p. 171)

Letra

(Fotografia de Howard Schatz, Ornstein Studio, An Intimate Alphabet, 1996, capturando a marca do efe. Do falo, da fala. De Freud)
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“Jean Allouch afirma que o luto freudiano é melancólico, que Freud ‘oferece ao enlutado a louca esperança de um reencontro do objeto perdido’...[14]: o objeto substituído. Não se pode reduzir o luto a um trabalho, ‘devemos tomá-lo no nível do ato, da perda seca onde já não há nenhuma compensação. Deixar o morto à sua morte’. Há em Freud e Lacan vigor e atualidade. Temos de atravessar qualquer ilusão de eleição para que tomemos do morto o legado que é sua letra. Já não se trata de encontrá-lo no deserto, nós o encontraremos em seu lugar na psicanálise”.
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(Abílio Ribeiro Alves. Trecho "Do luto e da transmissão" in Opinião Acadêmica, Rio de Janeiro, n.º 376, 2004, apud Jean Allouch. Erótica do luto no tempo da morte seca. RJ: Cia. de Freud, 2004, p. 171)

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Não-Todo

(Fotografia de Ana P!, vôo Webjet 6794, Rio-Brasília, 29.maio.09)
Pensando sobre o mal-estar, a falta, o "mais um" e temas correlatos, me alimentava das duras e balsâmicas palavras de Jacques Lacan durante aquela viagem, quando de repente percebi um olhar curioso vindo da poltrona ao lado, que, ao ser descoberto, revelou:

- O "Outro" falta??! ... Nem ligo. O Rivotril me completa!

Não-Todo

(Fotografia de Ana P!, vôo Webjet 6794, Rio-Brasília, 29.maio.09)
Pensando sobre o mal-estar, a falta, o "mais um" e temas correlatos, me alimentava das duras e balsâmicas palavras de Jacques Lacan durante aquela viagem, quando de repente percebi um olhar curioso vindo da poltrona ao lado, que, ao ser descoberto, revelou:

- O "Outro" falta??! ... Nem ligo. O Rivotril me completa!