terça-feira, 24 de agosto de 2010

O que fica


(Salvatore ou Jacques Perrin na cena final de "Cinema Paradiso", de Giuseppe Tornatore, ao som de Love Theme, de Ennio Moricone, Itália, 1988)

Depois de algum tempo, ao regressar ao ponto onde tudo começou mesmo sem saber o que encontraria por lá – ou se algo ainda restava a ser encontrado –, o que se carregava no peito, no fundo, era só a esperança de um encontro. Aquele encontro que já não se acreditava possível, mas, ao mesmo tempo, revelava-se real o bastante para tirar as coisas do lugar, fazer movimento. E, então, somente ao voltar lá, ao ponto onde tudo começou, podemos ver e falar do que não existe mais. E, só, ao voltar lá, podemos, enfim, recolher o que ficou do que se foi: a saudade.

Saudade do que já foi. Saudade do que não pôde ser. Saudade.

[E agora me vem à lembrança uma pergunta com a qual Lia me presenteou outro dia – de Edgar Allan Poe, mas atribuída a Derrida –, que ela disse sempre se fazer antes de iniciar uma escrita: “O que se passou?”. Penso que, agora, uma escrita.]

O que fica


(Salvatore ou Jacques Perrin na cena final de "Cinema Paradiso", de Giuseppe Tornatore, ao som de Love Theme, de Ennio Moricone, Itália, 1988)

Depois de algum tempo, ao regressar ao ponto onde tudo começou mesmo sem saber o que encontraria por lá – ou se algo ainda restava a ser encontrado –, o que se carregava no peito, no fundo, era só a esperança de um encontro. Aquele encontro que já não se acreditava possível, mas, ao mesmo tempo, revelava-se real o bastante para tirar as coisas do lugar, fazer movimento. E, então, somente ao voltar lá, ao ponto onde tudo começou, podemos ver e falar do que não existe mais. E, só, ao voltar lá, podemos, enfim, recolher o que ficou do que se foi: a saudade.

Saudade do que já foi. Saudade do que não pôde ser. Saudade.

[E agora me vem à lembrança uma pergunta com a qual Lia me presenteou outro dia – de Edgar Allan Poe, mas atribuída a Derrida –, que ela disse sempre se fazer antes de iniciar uma escrita: “O que se passou?”. Penso que, agora, uma escrita.]

domingo, 22 de agosto de 2010

Laço

(Fotografia de Lev, Granada, 2010)

"Só pode acreditar na dissolução como algo catastrófico aquele que acredita no laço".

Eduardo Vidal, um dia desses.

Laço

(Fotografia de Lev, Granada, 2010)

"Só pode acreditar na dissolução como algo catastrófico aquele que acredita no laço".

Eduardo Vidal, um dia desses.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Sem perceber, sem parar para pensar, sem pontuação

(José Saramago na praia Quemada, Lanzarote, Ilhas Canárias. Fotografia de Pedro Walter, El País)

E foi assim que ele entrou na minha vida: fazendo falta.

"Eu tinha uma história para contar, a história dessa gente, de três gerações de uma família de camponeses do Alentejo, com tudo: fome, o desemprego, o latifúndio, a política, a igreja, tudo. Mas me faltava alguma coisa, me faltava como contar isso... Então, o que aconteceu? Na altura da página 24, 25, estava indo bem e por isso eu não estava gostando. E sem perceber, sem parar para pensar, comecei a escrever como todos os meus leitores hoje sabem que eu escrevo, sem pontuação. Sem nenhuma, sem essa parafernália de todos os sinais, de todos os sinais que vamos pondo aí... Então, eu acho que isso aconteceu porque, sem que eu percebesse, é como se, na hora de escrever, eu subitamente me encontrasse no lugar deles, só que agora narrando a eles o que eles me haviam narrado. Eu estava devolvendo pelo mesmo processo, pela oralidade, o que, pela oralidade, eu havia recebido deles".

(Entrevista publicada no livro "José Saramago: O Período Formativo", de Horácio Costa,  Portugal: Ed. Caminho, 1998, p. 22-23)

Sem perceber, sem parar para pensar, sem pontuação

(José Saramago na praia Quemada, Lanzarote, Ilhas Canárias. Fotografia de Pedro Walter, El País)

E foi assim que ele entrou na minha vida: fazendo falta.

"Eu tinha uma história para contar, a história dessa gente, de três gerações de uma família de camponeses do Alentejo, com tudo: fome, o desemprego, o latifúndio, a política, a igreja, tudo. Mas me faltava alguma coisa, me faltava como contar isso... Então, o que aconteceu? Na altura da página 24, 25, estava indo bem e por isso eu não estava gostando. E sem perceber, sem parar para pensar, comecei a escrever como todos os meus leitores hoje sabem que eu escrevo, sem pontuação. Sem nenhuma, sem essa parafernália de todos os sinais, de todos os sinais que vamos pondo aí... Então, eu acho que isso aconteceu porque, sem que eu percebesse, é como se, na hora de escrever, eu subitamente me encontrasse no lugar deles, só que agora narrando a eles o que eles me haviam narrado. Eu estava devolvendo pelo mesmo processo, pela oralidade, o que, pela oralidade, eu havia recebido deles".

(Entrevista publicada no livro "José Saramago: O Período Formativo", de Horácio Costa,  Portugal: Ed. Caminho, 1998, p. 22-23)

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Promessa

("She's readin," por Pethack, República Checa, 2008)

Saramago, por sua vez, me contou que a escrita "provém de um princípio básico segundo o qual todo o dito se destina a ser ouvido".

"A gente vai falando para passar o tempo, ou para não deixar que ele passe, é um modo de pôr-lhe a mão no peito e dizer, ou suplicar, Não andes, não te movas, se dás esse passo pisas-me, que mal é que eu te fiz. É também como baixar-me, pôr a mão na terra e dizer-lhe, Pára, não gires, ainda quero ver o sol".

(José Saramago in "Cadernos de Lanzarote", 1997, p. 223, e "Levantado do chão", 1980, p. 166-167)

Por essas e outras é que hoje, dia 18 de agosto de 2010, estou por aqui celebrando a vida e a obra deste homem que me ensinou a falar por desvendar quem dizia, me ensinou a escutar por descobrir quem ouvia, me ensinou a tocar por amar demais, e que segue inspirando meus passos a cada novo amanhecer.

"O universo do escritor só aparecerá em toda a sua profundidade no exame, na admiração, na indignação do leitor; e o amor generoso é promessa de manter, e a indignação generosa é promessa de mudar e a admiração é promessa de imitar".

(Jean-Paul Sartre in "Que é a literatura?", São Paulo: Ática, 2004, p. 51)

Promessa

("She's readin," por Pethack, República Checa, 2008)

Saramago, por sua vez, me contou que a escrita "provém de um princípio básico segundo o qual todo o dito se destina a ser ouvido".

"A gente vai falando para passar o tempo, ou para não deixar que ele passe, é um modo de pôr-lhe a mão no peito e dizer, ou suplicar, Não andes, não te movas, se dás esse passo pisas-me, que mal é que eu te fiz. É também como baixar-me, pôr a mão na terra e dizer-lhe, Pára, não gires, ainda quero ver o sol".

(José Saramago in "Cadernos de Lanzarote", 1997, p. 223, e "Levantado do chão", 1980, p. 166-167)

Por essas e outras é que hoje, dia 18 de agosto de 2010, estou por aqui celebrando a vida e a obra deste homem que me ensinou a falar por desvendar quem dizia, me ensinou a escutar por descobrir quem ouvia, me ensinou a tocar por amar demais, e que segue inspirando meus passos a cada novo amanhecer.

"O universo do escritor só aparecerá em toda a sua profundidade no exame, na admiração, na indignação do leitor; e o amor generoso é promessa de manter, e a indignação generosa é promessa de mudar e a admiração é promessa de imitar".

(Jean-Paul Sartre in "Que é a literatura?", São Paulo: Ática, 2004, p. 51)

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Apelo

("Message in a bottle" por Kissof Crimson, EUA, 2010)

Sartre me respondeu: a escrita é um apelo.
Apelo de desvelamento.

[Hummm...]

Apelo

("Message in a bottle" por Kissof Crimson, EUA, 2010)

Sartre me respondeu: a escrita é um apelo.
Apelo de desvelamento.

[Hummm...]

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

domingo, 15 de agosto de 2010

Tentar

(Auto-retrato de SunBurst, EUA, 2007)

Dia #2
Onde estava com a cabeça quando resolvi começar a contar os dias?
Tentar outra coisa.

Tentar

(Auto-retrato de SunBurst, EUA, 2007)

Dia #2
Onde estava com a cabeça quando resolvi começar a contar os dias?
Tentar outra coisa.

sábado, 14 de agosto de 2010

Mas

("Mas" por Marta Felipa, Portugal, 2010)

Dia #1
Faz frio lá fora, mas aqui dentro... também.

Mas

("Mas" por Marta Felipa, Portugal, 2010)

Dia #1
Faz frio lá fora, mas aqui dentro... também.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

(Fotografia de Tomás Kátai, Edimburgo, Escócia, Inverno, 2008)
(Fotografia de Tomás Kátai, Edimburgo, Escócia, Inverno, 2008)

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Avante

(Fotografia de Anne Wolf, Califórnia, EUA)

Gradiva.

Avante

(Fotografia de Anne Wolf, Califórnia, EUA)

Gradiva.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Por toda uma vida

(Autor desconhecido)

"Estavam num quarto do Over, o motel onde tudo se iniciara e agora tudo se acabava. Tinham acabado de fazer amor, uma expressão que ele sempre abominara. Preferia copular. Não, já não era a mesma coisa. A chama que sempre flamejara com fúria sumira. Ele, depois de cinco anos, a percebera distante. A distância que vira nela o fizera afastar-se também. Era a última vez. Um certo momento ele pareceu ver, ali naquele mesmo quarto, o casal tão cheio de vida, fé e paixão de cinco anos antes. Ela tinha tirado a roupa, naquela primeira vez, e ele parecia não saber o que fazer. 'Você não vem?', perguntou ela. Não foi uma primeira vez gloriosa, mas depois viriam tais e tantas glórias, e tais e tantas misérias, que tudo o que acontecera antes para cada um dos dois tornou-se irrelevante como um tíquete já usado.

'Me diz a coisa mais bonita que você já disse a alguém', pediu ele no instante da separação. 'Você é o homem da minha vida. Uma vez perguntaram para a Tônia Carreiro sobre seu romance com o Rubem Braga. Valeu cem anos, ela respondeu. O nosso também. Cem anos'. Quando ela saiu do carro dele para nunca mais, ele ainda a chamou uma última vez.

'Me beija. Me beija por toda uma vida'.

E então eles se beijaram por toda uma vida".

(Texto "E então se beijaram por toda uma vida" de Fabio Hernandez, publicado em 10.ago.10, no blog Confissões de um Homem Sincero)

Por toda uma vida

(Autor desconhecido)

"Estavam num quarto do Over, o motel onde tudo se iniciara e agora tudo se acabava. Tinham acabado de fazer amor, uma expressão que ele sempre abominara. Preferia copular. Não, já não era a mesma coisa. A chama que sempre flamejara com fúria sumira. Ele, depois de cinco anos, a percebera distante. A distância que vira nela o fizera afastar-se também. Era a última vez. Um certo momento ele pareceu ver, ali naquele mesmo quarto, o casal tão cheio de vida, fé e paixão de cinco anos antes. Ela tinha tirado a roupa, naquela primeira vez, e ele parecia não saber o que fazer. 'Você não vem?', perguntou ela. Não foi uma primeira vez gloriosa, mas depois viriam tais e tantas glórias, e tais e tantas misérias, que tudo o que acontecera antes para cada um dos dois tornou-se irrelevante como um tíquete já usado.

'Me diz a coisa mais bonita que você já disse a alguém', pediu ele no instante da separação. 'Você é o homem da minha vida. Uma vez perguntaram para a Tônia Carreiro sobre seu romance com o Rubem Braga. Valeu cem anos, ela respondeu. O nosso também. Cem anos'. Quando ela saiu do carro dele para nunca mais, ele ainda a chamou uma última vez.

'Me beija. Me beija por toda uma vida'.

E então eles se beijaram por toda uma vida".

(Texto "E então se beijaram por toda uma vida" de Fabio Hernandez, publicado em 10.ago.10, no blog Confissões de um Homem Sincero)

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Badman!

(Imagem divulgada por Isaias Malta, Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul)

Como já dizia vovó depois da análise: passarinho que anda com (a)mor-cego acorda de cabeça para baixo.

Badman!

(Imagem divulgada por Isaias Malta, Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul)

Como já dizia vovó depois da análise: passarinho que anda com (a)mor-cego acorda de cabeça para baixo.

domingo, 8 de agosto de 2010

Sabe-se lá

(Ruínas da Sé, Cidade Velha, Portugal)

Certa tarde, ao me deparar com o nome de um dos três irmãos na leitura de uma das cenas de Hamlet, imediatamente lembrei-me dos outros dois, mas percebi, assustada, que justo do mais próximo, do mais lembrado, do mais presente, sempre, o nome me faltou. Não podia ser. Logo ele. Algo não estava certo. Fechei os olhos, forcei a memória: lembrava de suas histórias, do seu sorriso naquela fotografia perdida no tempo, mas o nome não vinha. Lançado no esquecimento para sempre naquele instante. O desespero tomou conta. Angústia de não saber. Perda de um bem querido. Abandonei todos os pensamentos que pudessem atrapalhar na busca daquele nome esquecido por engano, contra a minha vontade e, certamente, no lugar de outro.

"André? Marcelo? Guilherme? Não, não, não" - Outros nomes passaram por mim desassossegados, outras horas fugiram, o dia chegou ao fim. Nenhum vestígio de lembrança. Nada. Pensei em reler cartas antigas onde poderia facilmente encontrar, entre uma novidade e outra, notícias de longe que me levariam ao nome dele, mas resisti. Desejava encontrá-lo sozinha, dentro de mim, onde sua lembrança habitava e, sabe-se lá porque, cedeu às ruínas do esquecimento.

Dois dias se passaram. Muito trabalho. Muito esforço.

Nada.

E mais outro.

Silêncio absoluto.

"Chega" - Parti rumo à prateleira de vídeos e, um por um, tirei todos do lugar até chegar ao disco gravado com as letras garrafais que me trariam de volta... Ricardo. "Não pode ser" - Fiquei perplexa: o meu bisavô se chamava Ricardo. O irmão de minha mãe se chama Ricardo. Esse não era um nome comum, um nome qualquer. Era familiar demais para ser esquecido... e foi. Para sempre. Não consegui me lembrar. Que dor.  O que André, Marcelo e Guilherme traziam em comum além da letra erre - representante do esquecimento de Ricardo -, metáfora da errância de que a vida é feita, era a lembrança de um fim.  

André e Marcello, ex-namorados, muito amados, queridos, mas que o tempo se encarregou de afastar para sempre. Da vida. Do coração. Da lembrança cotidiana. Finais tristes - como devem ser mesmo os finais -, que permitiram que, a partir deles, minha vida pudesse continuar pulsando, errando, seguindo. Como deve ser mesmo.

Guilherme, o filho que não tive, o nome que não nomeou a criança não concebida, um nome sem dono, sem sentido, que guarda sob o manto da esperança de ainda tê-lo, as amarras que me impedem de tentar qualquer outra coisa... sem ele. Ele que me remete a outra letra - L -, um dono sem nome que continua me levando a Ricardo. Filho que não tive. Família não-famíliar. Esquecimento que revela a perda do que não foi. Ainda. "Pra onde?" - penso eu aqui, rindo, neste último lampejo associativo antes do sono me vencer definitivamente por hoje - "Pra lugar nenhum". E continua por aqui, cutucando, remexendo, ocupando, sabe-se lá de que jeito. Sabe-se lá a que preço. Sabe-se lá até quando.

Sabe-se lá

(Ruínas da Sé, Cidade Velha, Portugal)

Certa tarde, ao me deparar com o nome de um dos três irmãos na leitura de uma das cenas de Hamlet, imediatamente lembrei-me dos outros dois, mas percebi, assustada, que justo do mais próximo, do mais lembrado, do mais presente, sempre, o nome me faltou. Não podia ser. Logo ele. Algo não estava certo. Fechei os olhos, forcei a memória: lembrava de suas histórias, do seu sorriso naquela fotografia perdida no tempo, mas o nome não vinha. Lançado no esquecimento para sempre naquele instante. O desespero tomou conta. Angústia de não saber. Perda de um bem querido. Abandonei todos os pensamentos que pudessem atrapalhar na busca daquele nome esquecido por engano, contra a minha vontade e, certamente, no lugar de outro.

"André? Marcelo? Guilherme? Não, não, não" - Outros nomes passaram por mim desassossegados, outras horas fugiram, o dia chegou ao fim. Nenhum vestígio de lembrança. Nada. Pensei em reler cartas antigas onde poderia facilmente encontrar, entre uma novidade e outra, notícias de longe que me levariam ao nome dele, mas resisti. Desejava encontrá-lo sozinha, dentro de mim, onde sua lembrança habitava e, sabe-se lá porque, cedeu às ruínas do esquecimento.

Dois dias se passaram. Muito trabalho. Muito esforço.

Nada.

E mais outro.

Silêncio absoluto.

"Chega" - Parti rumo à prateleira de vídeos e, um por um, tirei todos do lugar até chegar ao disco gravado com as letras garrafais que me trariam de volta... Ricardo. "Não pode ser" - Fiquei perplexa: o meu bisavô se chamava Ricardo. O irmão de minha mãe se chama Ricardo. Esse não era um nome comum, um nome qualquer. Era familiar demais para ser esquecido... e foi. Para sempre. Não consegui me lembrar. Que dor.  O que André, Marcelo e Guilherme traziam em comum além da letra erre - representante do esquecimento de Ricardo -, metáfora da errância de que a vida é feita, era a lembrança de um fim.  

André e Marcello, ex-namorados, muito amados, queridos, mas que o tempo se encarregou de afastar para sempre. Da vida. Do coração. Da lembrança cotidiana. Finais tristes - como devem ser mesmo os finais -, que permitiram que, a partir deles, minha vida pudesse continuar pulsando, errando, seguindo. Como deve ser mesmo.

Guilherme, o filho que não tive, o nome que não nomeou a criança não concebida, um nome sem dono, sem sentido, que guarda sob o manto da esperança de ainda tê-lo, as amarras que me impedem de tentar qualquer outra coisa... sem ele. Ele que me remete a outra letra - L -, um dono sem nome que continua me levando a Ricardo. Filho que não tive. Família não-famíliar. Esquecimento que revela a perda do que não foi. Ainda. "Pra onde?" - penso eu aqui, rindo, neste último lampejo associativo antes do sono me vencer definitivamente por hoje - "Pra lugar nenhum". E continua por aqui, cutucando, remexendo, ocupando, sabe-se lá de que jeito. Sabe-se lá a que preço. Sabe-se lá até quando.

sábado, 7 de agosto de 2010

Não sonhava mais...


... Ao anoitecer, ela o espreitava de dentro da estante de livros, da lareira, do canto da sala, ele ouvia a sua respiração, o sussurrar carinhoso de suas roupas...

Não sonhava mais...


... Ao anoitecer, ela o espreitava de dentro da estante de livros, da lareira, do canto da sala, ele ouvia a sua respiração, o sussurrar carinhoso de suas roupas...

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Rapto

(O coreógrafo Jerome Robbins ensaiando alguns passos com a bailarina Patrícia McBride, do New York Ballet, 1974. Fotografia de Martha Swope)

"Quando Werther 'descobre' Charlotte  (quando a cortina se rasga e o quadro aparece), ela está cortando pão. Hanold se apaixona por uma mulher que está andando (Gradiva: aquela que avança), e ainda por cima enquadrada num baixo-relevo. O que me fascina, me rapta, é a imagem de um corpo em situação. O que me excita é uma silhueta trabalhando que não presta atenção em mim: Groucha, a jovem empregada, causa profunda impressão no Homem dos Lobos: de joelhos, ela esfrega o chão. É porque a postura do trabalho me garante de alguma forma a 'inocência da imagem': quanto mais o outro me proporciona os signos da sua ocupação, da sua indiferença (da minha ausência), mais tenho certeza de surpreendê-lo, como se, para me apaixonar, fosse preciso cumprir a formalidade ancestral do rapto, a saber a surpresa (surpreendo o outro, e por isso mesmo ele me surpreende: eu não esperava surpreendê-lo)".

(Roland Barthes, "Fragmentos de um Discurso Amoroso", Rio de Janeiro: Fancisco Alves, 1994, p. 169)

Rapto

(O coreógrafo Jerome Robbins ensaiando alguns passos com a bailarina Patrícia McBride, do New York Ballet, 1974. Fotografia de Martha Swope)

"Quando Werther 'descobre' Charlotte  (quando a cortina se rasga e o quadro aparece), ela está cortando pão. Hanold se apaixona por uma mulher que está andando (Gradiva: aquela que avança), e ainda por cima enquadrada num baixo-relevo. O que me fascina, me rapta, é a imagem de um corpo em situação. O que me excita é uma silhueta trabalhando que não presta atenção em mim: Groucha, a jovem empregada, causa profunda impressão no Homem dos Lobos: de joelhos, ela esfrega o chão. É porque a postura do trabalho me garante de alguma forma a 'inocência da imagem': quanto mais o outro me proporciona os signos da sua ocupação, da sua indiferença (da minha ausência), mais tenho certeza de surpreendê-lo, como se, para me apaixonar, fosse preciso cumprir a formalidade ancestral do rapto, a saber a surpresa (surpreendo o outro, e por isso mesmo ele me surpreende: eu não esperava surpreendê-lo)".

(Roland Barthes, "Fragmentos de um Discurso Amoroso", Rio de Janeiro: Fancisco Alves, 1994, p. 169)

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

É...


E como não poderia deixar de ser, ele então aproximou-se, tomou-a nos braços pela última vez e, em seu ouvido, sussurrou: "você... não... é".

É...


E como não poderia deixar de ser, ele então aproximou-se, tomou-a nos braços pela última vez e, em seu ouvido, sussurrou: "você... não... é".

domingo, 1 de agosto de 2010

Projeto

(Fotografia de Laoen, Alemanha, 2010)

"A responsabilidade é uma noção. A culpa é parte integrante do crime" - disse ela a partir da leitura de Kelsen.

Fizemos silêncio.

Culpa. Culpabilidade. Crime. Supereu. As idéias começavam a se articular.

Enquanto lia pela primeira vez aquelas normas já vistas há tantos anos - surpresa - e começava a pensar no que fazer com isso, dela veio a grande inspiração:

- Acho que apesar da minha idade não partirei tão cedo... Tenho um projeto. Não dá tempo pra morrer.

Cúmplices, sorrimos. - Voltemos ao plano.

Projeto

(Fotografia de Laoen, Alemanha, 2010)

"A responsabilidade é uma noção. A culpa é parte integrante do crime" - disse ela a partir da leitura de Kelsen.

Fizemos silêncio.

Culpa. Culpabilidade. Crime. Supereu. As idéias começavam a se articular.

Enquanto lia pela primeira vez aquelas normas já vistas há tantos anos - surpresa - e começava a pensar no que fazer com isso, dela veio a grande inspiração:

- Acho que apesar da minha idade não partirei tão cedo... Tenho um projeto. Não dá tempo pra morrer.

Cúmplices, sorrimos. - Voltemos ao plano.