quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Sentidos

("The reader" por Lucifersdream, Romenia, 2009)

Chegou em casa tarde, já cansada do dia, mas ao ouvir o chamado de Sebastião, na portaria, antes de tomar o elevador, sentiu o coração acelerar. Prenúncio de boa nova. Via sedex. Os olhos voltaram a brilhar ao avistar o embrulho. Tomou-o nas mãos como se a sua felicidade estivesse ali, naquele instante. E estava. Enquanto subia ao apartamento, entre pacotes e correspondências, pôde sentir aquela presença querida em seu abraço. Puxou-o com uma das mãos, sentiu o volume entre seus dedos, manuseou a embalagem buscando suas dimensões, seus limites, o apertou carinhosamente, leu cada uma de suas inscrições, deixou que escorregasse de um lado para outro no envelope; deslizando, fazendo uma espécie de música que só ela ouvia.

Ávida para tocá-lo, abriu a porta, deixou as chaves no aparador, rasgou cuidadosamente o envólucro e, de dentro do plástico bolha, pôde, enfim, avistá-lo; tê-lo como há tanto desejava. Agora ele estava ali, bem diante dos seus olhos, capa rija, impecável, páginas jamais tocadas por outras mãos como eram agora pelas suas. Folhas desvendadas pelos seus sentidos, agitadas diante do rosto. Ventania. Tão macias, tão cheirosas folhas, que traziam mensagens de além-mar, de um certo professor universitário, de Coimbra, que fala daquilo que sabe não saber: daquilo que está para além da luz, para além da lei, para além do direito, embora esteja aqui o tempo todo. Bem mais perto do que se imagina.
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"A Medicina, a História, o Direito e a Comunicação Social, todas estas são galáxias da percepção e da luz. Não é circunstancial que todas elas lidem, de uma forma ou de outra, com o problema da prova. Na medida em que produzem diagnósticos, interessam-se pelas condições do que pode dizer-se ter ocorrido, cuidam do testemunho e das condições que rodeiam a sua recolha; importam-se com o relato; instalam-se nos cruzamentos entre a fonte, a percepção e a decisão; especializam-se no visível; acreditam numa devolução de visibilidade ao que não a tem; aceitam responder a expectativas de trazer à luz aquilo que se acredita ter-lhe sido roubado. É por isso que têm sempre, por definição pontos cegos. Todo o campo de visão os tem. Eles são substanciais ao exercício do olhar. O ponto cego é privilégio de quem vê.
Dito isto, ele traduz um preço a pagar. O ponto cego é também a expressão de um excesso de confiança naquele privilégio e nas capacidades conjugadas dos sentidos e da razão para ver e para decidir. (...) Num caso como noutro, a intensificação do existente imprime um excesso de visibilidade, uma sobre-focagem num objecto considerado em fuga e que importa captar sob qualquer condição. Um objecto que desaparecerá, fatalmente, no horizonte do olhar, no momento exacto em que parece iminente a sua captura. Escondendo-se, doravante, no ponto cego.
É desta impossibilidade de captura que me ocupo".

Eu também.

(Introdução de "O Ponto Cego do Direito", de Rui Cunha Martins, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010)

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