domingo, 18 de julho de 2010

A ele

(Fotografia da coleção Primavera/2010 da marca Dace)

Neste dia 18 de julho, os amantes da obra de José Saramago lembraram a passagem do primeiro mês da sua partida. 

Foi com muita emoção que li no site da Fundação José Saramago sobre a proposta de um grupo de leitores inspirados numa referência feita à Fernando Pessoa no livro "O Ano da Morte de Ricardo Reis" para que brindemos Saramago com uma taça de vinho "em todos os continentes do mundo", falando dele, lendo páginas de qualquer livro, "livres de preconceitos e de prisões, discutir com a liberdade que Saramago reclamava e fazê-lo de forma explícita aos dias 18 dos próximos nove meses". Adorei.

Só que da "convocatória" para passarmos "nove meses despedindo-nos de quem não nos queremos despedir" eu estou fora.

Ficarei por aqui celebrando a vida de sua obra, a força de suas idéias e o que dele tocou, mudou e ficou na minha vida, nos próximos nove meses, nos outros nove que se seguirão e nos que virão depois. E assim será até que a minha também pare - porque um dia ela pára. Se chegará ao fim eu já não sei.

E assim, foi numa roda de chorinho, esta tarde, na Praça São Salvador, com copos descartáveis e umas latinhas de cerveja, com amigos de Saramago e outros que jamais leram nenhum dos seus livros, que brindamos à nossa vida atravessada por ele. Alguns, pela primeira vez naquele instante. Naquela praça. Naquele choro.

"Abriu o caderno sobre o atril, respirou fundo, colocou a mão esquerda no braço do violoncelo, a mão direita conduziu o arco até quase roçar as cordas, e começou. De mais sabia ele que não era rostropovich, que não passava de um solista de orquestra quando o acaso de um programa assim o exigia, mas aqui, perante esta mulher, com o seu cão deitado aos pés, a esta hora da noite, rodeado de livros, de cadernos de música, de partituras, era o próprio johann sebastian bach compondo em cöthen o que mais tarde seria chamado opus mil e doze, obras elas quase tantas como foram as da criação. A passagem difícil foi transposta sem que ele se tivesse apercebido da proeza que havia cometido, mãos felizes faziam murmurar, falar, cantar, rugir o violoncelo, eis o que faltou a  rostropovich, esta sala de música, esta hora, esta mulher. Quando ele terminou, as mãos dela já não estavam frias, as suas ardiam, por isso foi que as mãos se deram às mãos e não se estranharam. Passava muito da uma hora da madrugada quando o violoncelista perguntou. Quer que chame um táxi para a levar ao hotel, e a mulher respondeu. Não, ficarei contigo, e ofereceu-lhe a boca. Entraram no quarto, despiram-se e o que estava escrito que aconteceria, aconteceu enfim, e outra vez, e outra ainda. Ele adormeceu, ela não. Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. Olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contato dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu".

(José Saramago, "As Intermitências da Morte". São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 206/207)     

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