domingo, 25 de abril de 2010

Herói

(Miguel Torga debruçado sobre "Le Cas de Madame Lefebvre", de Marie Bonaparte, publicado na Revista Francesa de Psicanálise em 1927)
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Dividida, neste domingo, entre a leitura de um processo de cinco volumes - que trouxe para estudar em casa no feriado - e minhas pesquisas livre-associativas pela internet, fiquei com a segunda e encontrei uma deliciosa entrevista concedida por Freud ao jornalista americano George Sylvester Viereck, em 1926, publicada no Journal of Psychology, na qual falou quase tudo o que eu tinha a dizer hoje:
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"(...)
George Sylvester Viereck: Às vezes imagino se não seríamos mais felizes se soubéssemos menos dos processos que dão forma a nossos pensamentos e emoções. A psicanálise rouba a vida do seu último encanto ao relacionar cada sentimento ao seu original grupo de complexos. Não nos tornamos mais alegres descobrindo que nós todos abrigamos o criminoso e o animal.
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S. Freud: Que objeção pode haver contra os animais? Eu prefiro a companhia dos animais à companhia humana.
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George Sylvester Viereck: Por quê?
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S. Freud: Porque são tão mais simples. Não sofrem de uma personalidade dividida, da desintegração do ego, que resulta da tentativa do homem de adaptar-se a padrões de civilização demasiado elevados para o seu mecanismo intelectual e psiquico. O selvagem, como o animal, é cruel, mas não tem a maldade do homem civilizado. A maldade é a vingança do homem contra a sociedade pelas restrições que ela impõe. As mais desagradáveis características do homem são geradas por esse ajustamento precário a uma civilização complicada. É o resultado do conflito entre nossos instintos [pulsões, corrijo a tradução] e nossa cultura. Muito mais desagradáveis são as emoções simples e diretas de um cão, ao balançar a cauda, ou ao latir expressando o seu desprazer. As emoções do cão (acrescentou Freud pensativamente) lembram-nos os heróis da Antigüidade. Talvez seja essa a razão por que inconscientemente damos aos nossos cães nomes de heróis antigos como Aquiles e Heitor.
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George Sylvester Viereck: Meu cachorro é um doberman Pinscher chamado Ajax.
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S. Freud: (Sorrindo) Fico contente que não possa ler. Ele certamente seria um membro menos querido da casa se pudesse latir sua opinião sobre os traumas psíquicos e o complexo de Édipo! (...)"
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(Entrevista de Sigmund Freud concedida ao jornalista George Sylvester Viereck, em 1926, republicada no volume Psychoanalysis and the Fut, edição especial do Journal of Psychology, Nova Iorque, 1957, divulgada na íntegra no site Antroposmoderno, com tradução de Paulo César Souza)
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Pensando em Ajax, Muralha, com sua lança comprida, pedras colossais, lembrei de Miguel, Torga, aquele que diante do espelho não sucumbiu: retornou, bravo, chorou sua humanidade e fez poesia.
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"Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso,
de ser assim como sou
Me confesso o bom e o mau
Que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou".
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(Miguel Torga, trecho de "O Livro de Horas" in "O Outro Livro de Job", 1936)

2 comentários:

Nana disse...

Rs... meu gato chama Odin... o outro Ulisess... tudo a ver.
Me lembrou uma frase do Freud: "Somos feitos de carne e ossos, mas nesta vida temos que agir como se fôssemos de ferro..."

Isabela Dantas disse...

Que bacana, Nana! Um, deus da sabedoria, o outro, senhor da odisséia; que nomes inspirados! Adorei! Quanto ao ferro, tô fora! Aprender a fazer com essa carne e ossos, com as lágrimas, com esse sangue que corre nas veias, é o meu grande desafio de cada dia...
Um beijo.