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Aqui, diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.
.
Me confesso
possesso
das virtudes teologais, que são três, e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.
.
Me confesso
o dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo andanças
do mesmo todo.
.
Me confesso de ser charco
e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
que atira setas acima
e abaixo da minha altura.
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Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
.
Me confesso de ser homem.
De ser um anjo caído
do tal céu que Deus governa;
de ser um monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.
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Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!
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(Miguel Torga, “Livro de Horas” in “O Outro Livro de Job”, 1936)
6 comentários:
Essa é provavelmente uma das poesias mais lindas que já vi... Maravilha de espelho esse em que também consigo me espelhar... Ótimo post!
Caro Leonard,
Obrigada pelas palavras!
Miguel Torga foi um poeta português contemporâneo de Fernando Pessoa, mas só entrou na minha vida recentemente, depois de encantar-me para sempre com esse "Livro de Horas". Belíssimo mesmo.
Um abraço.
Coisa linda. Muito,muito linda.
Caro Augusto,
Que bom que gostou!
Esta poesia me emociona muito e fico feliz em poder compartilhar essa beleza, esse entantamento com vocês.
Um abraço.
Pra gente, ele podia se resumir a esta parte aqui:
Aqui, diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou
Confessa tb?
Confesso. Claro que confesso.
Chamei até o Padre Marcelo para sair e depois esqueci o porquê, imagine!
É a deriva em que vou.
[E se lembrar depois conto para vocês.]
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