segunda-feira, 9 de março de 2009

Desencontros Inspiradores

Ophélia de Queiroz, grande amor de Fernando Pessoa (1888/1935).

"Um dia faltou a luz no escritório. O Freitas não estava e o Osório, o 'grumete', tinha saído a fazer um recado. O Fernando foi buscar um candeeiro de petróleo, acendeu-o e pô-lo em cima da minha secretária.
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Um pouco antes da hora de saída, atirou-me um bilhetezinho para cima da secretária, que dizia: 'Peço-lhe que fique'. Eu fiquei, na expectativa. Nessa altura já eu me tinha apercebido do interesse do Fernando por mim, e eu confesso, também lhe achava uma certa graça…
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Lembro-me que estava em pé, a vestir o casaco, quando ele entrou no meu gabinete. Sentou-se na minha cadeira, pousou o candeeiro que trazia na mão e, virado para mim, começou de repente a declarar-se, como Hamlet se declarou a Ofélia: 'Ó, querida Ofélia! Meço mal os meus versos; careço de arte para medir os meus suspiros; mas amo-te em extremo. Oh! até do último extremo, acredita!'
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Fiquei pertubadíssima, como é natural, e, sem saber o que havia de dizer, acabei de vestir o casaco e despedi-me precipitadamente. O Fernando levantou-se, com o candeeiro na mão, para me acompanhar até à porta. Mas, de repente, pousou-o sobre a divisória da parede; sem eu esperar, agarrou-me pela cintura, abraçou-me e, sem dizer uma palavra, beijou-me, beijou-me apaixonadamente, como louco.
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(...)
Fui para casa, comprometida e confusa. Passaram-se dias e como o Fernando parecia ignorar o que se havia passado entre nós, resolvi eu escrever uma carta, pedindo-lhe uma explicação. É o que dá origem à sua primeira carta-resposta, datada de 1 de Março de 1920.
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Assim começámos o 'namoro'."

Ophéliazinha:

Para me mostrar o seu desprezo, ou pelo menos, a sua indiferença real, não era preciso o disfarce transparente de um discurso tão comprido, nem da serie de 'razões' tão pouco sinceras como convincentes, que me escreveu. Bastava dizer-m’o. Assim, entendo da mesma maneira, mas doe-me mais.

Se prefere a mim o rapaz que namora, e de quem naturalmente gosta muito, como lhe posso eu levar isso a mal? A Opheliazinha pode preferir quem quiser: não tem obrigação - creio eu - de amar-me, nem, realmente necessidade (a não ser que queira divertir-se) de fingir que me ama.

Quem ama verdadeiramente não escreve cartas que parecem requerimentos de advogado. O amor não estuda tanto as cousas, nem trata os outros como réus que é preciso 'entalar'.

Porque não é franca comigo? Que empenho tem em fazer sofrer quem não lhe fez mal - nem a si, nem a ninguém-, e quem tem por peso e dor bastante a própria vida isolada e triste, e não precisa de que lh’a venham acrescentar creando-lhe esperanças falsas, mostrando-lhe afeições fingidas e isto sem que se perceba com que interesse, mesmo de divertimento, ou com que proveito, mesmo de troça.

Reconheço que tudo isto é cômico, e que a parte mais cômica d’isto tudo sou eu.

Eu-proprio acharia graça, se não a amasse tanto, e se tivesse tempo para pensar em outra cousa que não fosse não fosse no sofrimento que tem prazer em causar-me sem que eu, a não ser por amá-la, o tenha merecido, e creio bem que amá-la não é razão bastante para o merecer. Enfim…

Ahi fica o 'documento escrito' que me pede. Reconhece a minha assinatura o tabelião Eugenio Silva.

01/03/1920
Fernando Pessoa

(Carta de Fernando Pessoa e relato de Ophélia Queiroz - 1900/1991 - recolhido e estruturado por sua sobrinha-neta Maria da Graça Queiroz, publicados no site oficial de Fernando Pessoa.)

Menos de dois meses depois...

Meu Bebezinho lindo:

Não imaginas a graça que te achei hoje á janella da casa de tua irmã! Ainda bem que estavas alegre e que mostraste prazer em me ver (Alvaro de Campos).

Tenho estado muito triste, e além d’isso muito cansado - triste não só por te não poder ver, como tambem pelas complicações que outras pessoas teem interposto no nosso caminho. Chego a crer que a influência constante, insistente, habil d’essas pessoas; não ralhando contigo, não se oppondo de modo evidente, mas trabalhando lentamente sobre o teu espirito, venha a levar-te finalmente a não gostar de mim. Sinto-me já differente; já não és a mesma que eras no escriptorio. Não digo que tu propria tenhas dado por isso; mas dei eu, ou, pelo menos, julguei dar por isso. Oxalá me tenha enganado…

Olha, filhinha: não vejo nada claro no futuro. Quero dizer: não vejo o que vãe haver, ou o que vãe ser de nós, dado, de mais a mais, o teu feitio de cederes a todas as influencias de familia, e de em tudo seres de uma opinião contraria á minha. No escriptorio eras mais docil, mais meiga, mais amoravel.

Enfim… Amanhã passo á mesma hora no Largo de Camões. Poderás tu apparecer á janella?

Sempre e muito teu
Fernando

(Carta a Ophélia Queiroz em 24.abr.1920 publicada no site oficial de Fernando Pessoa)

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