domingo, 11 de janeiro de 2009

Escolhas

(Renato Lourenço, o "Gari Sorriso", clicado em uma praça qualquer do Rio de Janeiro,
em um dia qualquer de sol)


Era sábado, quase meio dia, sol a pino, eu dentro do carro a caminho do escritório - ainda tinha algumas pendências a cumprir antes das férias -, e o humor - adivinha? - péssimo.


Na verdade, depois das festas de Reveillon - no plural, sim, porque comemoração para mim é coisa séria, vira rave, dura dias - ainda não tinha conseguido ficar verdadeiramente contente este ano, e isso já estava começando a me irritar. Foram tantas as conquistas em 2008, tantos os projetos para 2009, as férias começando logo na segunda-feira, o que mais eu poderia querer?

[Bom, se fosse pensar direitinho poderia começar uma lista aqui, mas tive uma idéia melhor...]

O que mais eu poderia querer? - sem ser injusta por todas as coisas que tenho - era exatamente a pergunta que me fazia ao passar pelos arcos da Lapa; quando, de repente, avistei um grupo de garis limpando a praça. Seria apenas mais um grupo de garis limpando a praça se entre eles não houvesse aquele feliz. Um gari feliz no meio dos outros, que, como ele, apenas limpavam a praça.
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Com um balde na mão, em movimentos repetitivos, enfiava o braço no latão de lixo, que não tinha lixo, mas água e sabão, mexia, remexia, fazia espuma e jogava para o alto como confete de carnaval. E sorria. E fazia de novo. Mais rápido. Balde no latão, água e sabão, espuma no chão. E pulava. E esquiava também, já todo molhado. Por um momento imaginei que ele não deveria estar sentindo o calor que eu sentia dentro do carro - com o ar condicionado no nível 03 - e por pouco não parei o carro para me juntar a eles na limpeza da praça, mas logo me lembrei que, assim como ele, também seria capaz de transformar esse calor em outra coisa.

Segui adiante lamentando não ter uma mágina fotográfica na bolsa para registrar aquele genuíno "acto poético" - como diria Saramago -, e ao chegar no escritório abri a janela da sala - nada de ar condicionado, eu gosto de vento - , tirei o sapato, acendi um incenso, conferi o horário da sessão de "Vicky Cristina Barcelona", e o trabalho, que escolhi fazer naquele sábado - mesmo podendo ter transferido a outro advogado - para sair de férias com a consciência do dever cumprido, fluiu que foi uma beleza.

Entre um processo e outro escutei meu estômago - tão negligenciado ao longo de anos -, mandei um Nutry para dentro e, de olho no relógio, com o trabalho feito, me mandei para o cinema feliz, feliz.
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[Como dizem por aí, Woody Allen, assim como pizza e sexo, até quando ruim é muito bom, e isso era tudo o que eu estava precisando naquele dia.]

E minha delícia começou já na entrada, ao ver o cartaz onde os personagens-metade buscam algo que os olhos não alcançam. E fazem do jeito que dá. Uns segurando, outros ficando, outros partindo...
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(Javier Bardem, Penelope Cruz e Scarlett Johansson em "Vicky Cristina Barcelona", 2008, Woody Allen)
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O filme, então, nem se fala. Comédia saborosíssima. Conta a história de gente como nós, uns que sofrem, outros que não sabem que sofrem, que são felizes, às vezes mais, às vezes menos, às vezes não, às vezes se esquecem ou não sabem que são, e que buscam um algo mais que seja capaz de levar embora toda a insatisfação, toda a dúvida, toda a tristeza, todo o tédio, todo o medo, toda a dor, enfim... você já entendeu.
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O mais genial desse filme é como Woody Allen consegue descortinar essa angústia, que para cada um de nós se revela de forma tão diferente, tão complexa, tão contrária e tão fundamentalmente igual à dor do outro... E como ele consegue retratar as formas tão distintas com que lidamos com essa dor. Na verdade, não se trata aqui de "forma", pois não há medida ou razão aí, mas sim como reagimos a essa dor, como somos, nossa essência, que determina e diferencia claramente nossas escolhas para lidar com isso.
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E no final das contas - no filme e na vida - a conclusão é uma só: não há aquele "algo-mágico" poderoso, não há escolha certa ou errada, não há chegada ou porto seguro. Há só caminhada, deriva - como diria meu querido Ferrari -, e escolhas, que nunca nos farão inteiramente isso ou aquilo, porque inteiros não somos, vai sempre ficar faltando um pedaço, exatamente aquele pedaço que dá sentido à caminhada, à deriva, à vida que escolhemos diariamente.
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Recomendo o filme.
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E Lacan também.
Depois do cineminha passei na Siciliano e trouxe três volumes do Seminário para casa.
Abri um bom vinho, mergulhei nos estudos sobre resistência e outras merdas que nos empacam, e, lá pras tantas, adormeci.
Sozinha, óbvio.

5 comentários:

Anônimo disse...

Isabela,

to acompanhando seus blogs e suas histórias....to maravilhado com a narrativa, com esse seu ar lírico-cômico de ver o mundo.
Parabéns e continue assim...
Bj Anonimo
ps.: como eu te conheço, vou ficar como anonimo (sem acento) e no dia que nos encontrarmos eu falo que sou eu, o anonimo (sem acento) tá?

Isabela Dantas disse...

Caro Anonimo,

Obrigada por suas palavras.
Fico feliz que goste dos blogs e das histórias. Volte sempre.

Um abraço.

Anônimo disse...

Já voltei, mas ainda não tem post novo....
Bj Anonimo

Juliana Pimentel Pestana disse...

Minha linda... amo vc!

Adorei cada linhazinha. Uma pena vc ter visto o filme que eu queria companhia pra ver nesse final de semana.

Obrigada por ontem. Sinto a brisa passando por mim novamente...

Bjos meus.

Isabela Dantas disse...

Minha querida Ju,
Ah que pena! O filme é ótimo, mas na sua companhia seria muito melhor! Juro que da próxima vez que pensar em ir ao cinema sozinha vou ligar para você! "Hermanoteu" que nos aguarde hoje!
E não precisa agradecer, minha linda! Só em saber que a brisa voltou a passar por aí novamente já me sinto mais do que feliz!
Conte comigo sempre, sempre, sempre!!!
Beijos e mais beijos, querida!