domingo, 21 de dezembro de 2008

Inumeráveis

"Eu caminhava, corria, tropeçava em algumas poças, o seguia, o perseguia, não via a hora de falar com ele, de mirá-lo nos olhos. Mas era proibido e eu sabia os motivos. Se os outros tivessem sabido daquela visita impossível, jamais concedida a alguém... talvez antigamente, dizem, muito tempo atrás, mas é uma dessas histórias que são contadas às crianças para acalmá-las, para que acreditem que não é totalmente impossível e que, portanto, podem ficar tranqüilas e confiantes, mas aconteceu muito, muito tempo atrás, há tantos anos que é como se não tivesse ocorrido ou quem sabe sim, mas tanto tempo atrás que se pode esperar, mas com paciência, enorme paciência, porque antes que aconteça de novo deve transcorrer o mesmo tanto de tempo e sendo assim não é o caso de se agitar. Mas se soubessem que ele de fato esteve aqui dentro, que veio aqui embaixo em carne e osso, por mim, se nos tivessem visto juntos, quem sabe a revolta que haveria. Meu Deus, mas que revolta. Não provocam, não provocamos medo em ninguém, de tão maltrapilhos e macilentos que estamos, uma fieira de roupas penduradas no gancho. Mas somos - sou, parece que já posso dizer - tantos, e tão inumeráveis, que podemos inspirar um pouco de medo, um enxame de insetos que turva o céu".

(Claudio Magris em "O Senhor vai Entender", São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.37)

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