segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Demônios

"Antigamente havia umas doenças que não existem mais. Vento-virado, estuporamento, mijação, espinhela caída, nó na tripa, mal-dos-sete-dias. Dentre os mais temidos estava o mal-dos-sete- dias, que matava as criancinhas antes de atingirem os sete dias de idade. Todo cuidado era pouco. Fechavam-se as janelas da casa para que o dito mal não entrasse no vento e na friagem. Enquanto isso, a criancinha ia sendo tratada com cuidado. Ah! O que requeria maiores cuidados era o umbigo que era cuidado com uma pomada feita com urina da mãe, raspa do chapéu do pai, fumo de rolo picado, teia de aranha, bosta de vaca seca. E aí, a despeito das janelas fechadas e da pomada, a criancinha morria. Mal-dos-sete-dias - ninguém fala mais nele. Deixou de existir? Não. Existe e pode matar do mesmo jeito. Só que mudou de nome. O nome dele hoje é tétano. Possessão demoníaca acabou? Não acabou, não. Continua a existir com outros nomes.
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O Novo Testamento conta a história de um homem possuído por demônios. Dizem os evangelhos que os demônios eram tão fortes que nem mesmo grossas correntes conseguiam segurar o possesso. O infeliz havia se mudado para os sepulcros, cortava-se com pedras afiadas e uivava como um animal.
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Possessão demoníaca é isso. Primeiro a força. Nem correntes o seguravam. Se correntes não seguravam o homem, que dizer de sua enfraquecida vontade? Se o demônio fosse mais fraco, ele o expulsaria de sua casa-corpo. Mas o demônio era mais forte e fazia com o seu corpo aquilo que ele mesmo não queria. O demônio o cortava com pedras afiadas. Devia doer muito. Quem teria prazer numa coisa tão terrível? Ninguém. Quem queria era um poder estranho, inimigo dele, que o levava para perto da morte e o fazia uivar como um bicho.
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Isso deixou de existir? (...)
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Quando a gente tem uma idéia obsessiva, não quer dizer que a gente queira aquilo. Quer dizer o contrário: a gente não quer aquilo. O endemoniado do Novo Testamento não queria ser o que ele era. Ele era o que era, contra a vontade.
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Você é manso. Gosta das pessoas. Não quer ser violento. Mas de repente, o demônio toma o seu corpo e você vira 'Hulk'. Você não se corta com pedras afiadas. Você corta os outros com palavras afiadas. E você sofre. Os demônios trazem sempre sofrimento. Se você não sofre, é porque já ficou igual a eles".
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(Revista Psique, n. 34, artigo "Um corpo Descontrolado", Rubem Alves)

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