quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Encontros

(Ginger Rogers e Fred Astaire in "The Waltz in Swing Time" de Swing Time, 1936)

[Escrito no Vôo Gol 2343, BSB-GIG]

Caro Senhor dos Olhos Azuis,

O meu dia não estava sendo nada fácil. Nada mesmo. Agradeci aos céus por aquela viagem de última hora, aos trancos e barrancos, para Brasília. Por um instante cheguei a acreditar que os problemas ficariam em casa, mas logo me lembrei de Hilda Hilst que dizia: “Tu não te moves de ti”, babe...
 
E lá fui eu comigo mesma para o Distrito Federal.

Quando você me olhou da poltrona ao lado, com aqueles grandes olhos azuis, confesso que pensei: “se prepara, porque a viagem vai ser longa”.

Me incomodei mesmo, admito. Esperei o pior e logo tratei de sacar um livro de dentro da bolsa vermelha para tentar me proteger, me isolar de você e do resto do mundo, que hoje – especialmente hoje – está me assustando bastante.

Me agarrei a Barthes como de costume e fui sentindo o coração desacelerar à medida em que ele me acolhia em suas palavras inscritas nas páginas já amareladas daquele livro tão gasto, tão puído, tão manuseado ao longo de tantos anos.

Na primeira pausa me estiquei na poltrona, olhei pela janela, aceitei uma bebida, e voltei com Barthes para a bolsa vermelha. É que ele sempre exige muito de mim e eu só sobrevivo a ele do meu jeito. Não tem jeito. Vou lendo aos poucos, de trás para a frente, aleatoriamente. Prefiro assim.

Só que nesse momento percebi que você continuava a me olhar.

Rapidamente voltei à minha bolsa e saquei de lá Sempé e Goscinny, que têm me acompanhado ao trabalho desde que Hugo começou a insistir para eu que escrevesse no blog sobre o seu novo amigo, Nicolau. Sobre Nicolau ainda não escrevi nada, mas, lembrando-me disso, pensei que aquela poderia ser uma boa oportunidade de conhecer mais uma de suas aventuras - afinal, para desanuviar a mente não há nada melhor do que... crianças.

[A propósito, a historinha sobre o encontro de Nicolau com Luisinha, a “menina” de sua vida, é sensacional. Ela é sonsa, implicante, chantagista, quebra a vidraça da casa dele com uma bolada, ele aceita levar a culpa, fica de castigo em seu lugar, fica sem sobremesa no jantar e conclui antes de dormir: “Quando a gente crescer, a gente vai se casar. Ela tem um chute incrível!”. Humano demasiado humano...]

E então, nesse momento, o inusitado acontece. Sem a menor cerimônia, você interrompe a minha importante leitura e pergunta:
- Você lê muito?

Confusa, respondo:
- Não tanto quando gostaria...
- E que livros são esses que você está lendo?

Muito desconcertada com a pergunta e incomodada com a firmeza com que me inquiria – como se tivesse um propósito claro, como se soubesse exatamente onde chegaria com aquilo –, respondi:
- Roland Barthes. E o outro... é um livro infantil do meu filho.

Pronto - pensei: “O que será que esse cara vai pensar de uma mulher que fica lendo livro de criança no avião?”

E, surpreendentemente, você não se admirou. E perguntou:
- E quantos anos tem o seu filho?

Pronto – pensei comigo: “O próximo passo vai ser pedir o meu telefone. E esse eu juro que vou mandar para o inferno! Ah, vou”.

- Sete.
- E ele gosta de ler?
- Gosta. E esse livrinho...

Mas antes que eu começasse a explicar o que o livro do meu filho estava fazendo dentro da minha bolsa, com uma convicção incrível você disse:

- Ele precisa ler Dom Quixote. Saiu agora uma edição nova, em formato de quadrinhos, exatamente para crianças da idade dele. E prosseguiu – E você deve estar se perguntando como eu sei disso...

Juro que não me perguntei nada, mas também não lhe contei isso. Preferi ficar em silêncio enquanto se explicava:

- É que dei esse livro de presente ao meu neto no seu aniversário...

E antes que eu tivesse tempo de pensar em qualquer coisa para falar a respeito do assunto, você abruptamente esticou a mão em direção a Barthes e disse “me deixa ver esse livro aqui”, tirando-o das minhas mãos como se tira o doce da boca de uma criança.

Fiquei MUITO puta - lógico - e tive vontade de lhe mandar à merda. Mais ainda porque enquanto você folheava meus “fragmentos” - de um Discurso Amoroso -, tive a nítida sensação de que tinha sido descoberta, revelada, como se pudesse ali, naquele momento, desvendar os meus segredos mais bem guardados.

E antes que começasse a pensar em destilar um ácido comentário sobre aquele seu assalto, fui novamente surpreendida:

- Você trabalha com lingüística?!
- Não! – Respondi impaciente.
- Filosofia?
- Não! Sou advogada!
- Hum...

E após a leitura de duas linhas aleatórias escolhidas em uma página qualquer, você me devolveu o livro e disse com um ar de felicidade:

- Há muito tempo não via um livro assim.
- Assim como??? – Perguntei assustada.
- Assim... tão querido, tão precioso, tão importante.

Fiquei muda.
Você conseguiu enxergar o valor daquele livro para mim só em olhar para ele, para suas páginas amareladas, sua encadernação desgastada, rota, consumida por minhas mãos – por meus olhos – ao longo de todos esses anos...

- Você já leu Ulisses, de James Joyce, e Dom Quixote, de Cervantes?

Pronto – pensei comigo – agora ele vai me achar uma ignorante completa...
- Não, apesar de conhecer as histórias...
- Sabe, da literatura universal, eu acho que são as obras que melhor retratam a natureza humana. E é isso que te interessa, não é?! - perguntou baixinho, como se olhasse no fundo da minha alma e já soubesse a resposta.

- Sim. É isso - Contei-lhe com os olhos brilhando, já não escondendo a admiração que estava sentindo.
- Pois, então, leia-os.

E continuou:
– Vou lhe contar um segredo: o meu Dom Quixote é igual a esse seu aí... – apontando para Barthes – Já li umas oito vezes ao longo da minha vida.

E, antes que prosseguisse, foi a minha vez de completar:
- E cada vez que o relê é uma nova história que conhece... são novos os "fragmentos" que descobre aí dentro...
[Silêncio]
- Sim. É isso...

Então, tive vontade de lhe contar um segredo meu:
- A vida me encanta tanto... que eu acabo aprendendo mais na prática do que na teoria.
- ... Mas o importante é aprender. Sempre. Seja como for – você disse enquanto voltava o olhar para a poltrona da frente.

Feliz, feliz, por ter me dado a chance de conhecer uma pessoa tão especial – o que não acontece a qualquer hora –, voltei os olhos para Barthes, mas mal consegui retomar a leitura e já percebi que era hora de desembarcar.

Sem que trocássemos mais uma palavra sequer, você se levantou, sorriu para mim, sacou do alto do bagageiro uma linda bolsa vermelha e partiu.

E eu, que costumo ser a mais apressada para descer, fiquei ali, sentada, olhando você ir embora, observando seus passos tranqüilos, com a certeza de que havia aprendido mais uma lição: sobre os encontros.

O real sentido da vida está exatamente nos encontros - sejam eles belos, acanhados, tortos, desajeitados -, porque neles nos apresentamos. E para isso relembramos a nós mesmos quem somos. E reafirmamos. Ou reajustamos. Retificamos. Aprimoramos. Caminhamos... caminhamos... caminhamos.

Agradeço a você, caro Senhor dos Olhos Azuis, por nosso magnífico encontro, que - tenho certeza -, como todo magnífico encontro, se torna eterno dentro de nós, e, não por outra razão, dispensa despedidas...

Um grande beijo.

[Nota aos leitores: vale registrar que o Senhor dos Olhos Azuis, destinatário desta carta, deve ter entre 70 e 80 anos de idade, enquanto a “Velha Filha da Puta” do texto anterior não passa dos 60...]

2 comentários:

Anônimo disse...

Menina,
agradeço a Deus por ter achado o seu blog.

A maneira que vc descreve o encontro e a sensibilidade com as palavras, me deixou bem emocionado.

Você é muito especial!

Um forte abraço.

Anônimo

Isabela Dantas disse...

Caro Anônimo,

Fico muito feliz com o seu comentário e grata por sua generosidade.

Muito, muito obrigada!

Um forte abraço.