sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Relançando o tal Desejo

(Sabine em uma cena do documentário "O nome dela é Sabine" -"Elle s’appele Sabine" - de Sandrine Bonnaire, França, 2007)
.
Então, vamos lá.
O desejo é agora novo.
O objeto é o mesmo - que bom -, mas o desejo é novo.
E eu que queria saber se essas coisas eram possíveis mesmo ou se era conversa de Lacan...
Veja só.
Como diria a Calcanhotto, "Flores"! Muitas flores para Lacan!
.
E por falar em flores, me lembrei de uns "exilados" que andam por aí.
Exilados queixosos.
Exilados fujões.
Exilados brigões, cansados, sofridos, andarilhos queridos, chorões, tateantes, falantes, faltantes inconformados, adoráveis ouvintes desta rádio-blá-de-bolha-de-sabão.
.
Pois BEM, meu bem.
Surge, então, a questão: Que exílio é esse de que se trata?
.
De exílio eu não entendo muito bem, não - como quase tudo nessa vida - mas devo confessar que desejo muito entender...
.
Exílio me leva àqueles que estão longe de casa, banidos, refugiados em algum lugar distante, desterrados, desgraçadamente afastados de nós, ausentes.
.
E tua voz, presente, me conduz.
.
E teu exílio me leva ao belíssimo documentário que assistirei neste final de semana chamado "O nome dela é Sabine", que nos conta a história de uma mulher que filma a sua irmã mais nova ao longo da vida e, com uma coragem admirável, nos revela a sua imensa dor. Ela nos conta que o seu mundo, na verdade, era ela.
Longe dali.
.
(O Globo online, crítica de Andre Miranda, publicada em 10.ago.09)
.
"Minha irmã, meu mundo
‘O nome dela é Sabine’. Com a câmera na mão, a diretora filma sua irmã mais nova, em imagens que serão montadas em alternância com cenas de arquivo. Nada demais se uma não fosse Sandrine Bonnaire, uma das mais talentosas atrizes francesas, e se a outra não tivesse autismo. O documentário “Elle s’appelle Sabine” (no original) desperta um interesse inicial por conta da fama de sua diretora e pela vontade dela em expor seu drama familiar.
.
Só que isso é apenas o ponto de partida. Com a narração de Sandrine, vai se entendendo como o estado de Sabine foi piorando, muito por equívocos externos (dos parentes, inclusive). A diretora parece carregar uma espécie de culpa, ao mesmo tempo em que tenta transformar em imagem o fardo de seguir ao lado da irmã quando o autismo se agrava. Em paralelo ao distúrbio de uma está o sentimento da outra. “O nome dela é Sabine e o meu é Sandrine” seria um título apropriado.
.
Mas não se deve imaginar que o tom pessoal faça do filme uma obra egocêntrica. A relação sincera — nunca piedosa — das irmãs Bonnaire consegue imprimir um caráter instrutivo ao documentário. As gravações antigas mostram como Sabine era bonita e tinha vida social, apesar das implicações de um distúrbio que a família demorou a compreender (...)".

Relançando o tal Desejo

(Sabine em uma cena do documentário "O nome dela é Sabine" -"Elle s’appele Sabine" - de Sandrine Bonnaire, França, 2007)
.
Então, vamos lá.
O desejo é agora novo.
O objeto é o mesmo - que bom -, mas o desejo é novo.
E eu que queria saber se essas coisas eram possíveis mesmo ou se era conversa de Lacan...
Veja só.
Como diria a Calcanhotto, "Flores"! Muitas flores para Lacan!
.
E por falar em flores, me lembrei de uns "exilados" que andam por aí.
Exilados queixosos.
Exilados fujões.
Exilados brigões, cansados, sofridos, andarilhos queridos, chorões, tateantes, falantes, faltantes inconformados, adoráveis ouvintes desta rádio-blá-de-bolha-de-sabão.
.
Pois BEM, meu bem.
Surge, então, a questão: Que exílio é esse de que se trata?
.
De exílio eu não entendo muito bem, não - como quase tudo nessa vida - mas devo confessar que desejo muito entender...
.
Exílio me leva àqueles que estão longe de casa, banidos, refugiados em algum lugar distante, desterrados, desgraçadamente afastados de nós, ausentes.
.
E tua voz, presente, me conduz.
.
E teu exílio me leva ao belíssimo documentário que assistirei neste final de semana chamado "O nome dela é Sabine", que nos conta a história de uma mulher que filma a sua irmã mais nova ao longo da vida e, com uma coragem admirável, nos revela a sua imensa dor. Ela nos conta que o seu mundo, na verdade, era ela.
Longe dali.
.
(O Globo online, crítica de Andre Miranda, publicada em 10.ago.09)
.
"Minha irmã, meu mundo
‘O nome dela é Sabine’. Com a câmera na mão, a diretora filma sua irmã mais nova, em imagens que serão montadas em alternância com cenas de arquivo. Nada demais se uma não fosse Sandrine Bonnaire, uma das mais talentosas atrizes francesas, e se a outra não tivesse autismo. O documentário “Elle s’appelle Sabine” (no original) desperta um interesse inicial por conta da fama de sua diretora e pela vontade dela em expor seu drama familiar.
.
Só que isso é apenas o ponto de partida. Com a narração de Sandrine, vai se entendendo como o estado de Sabine foi piorando, muito por equívocos externos (dos parentes, inclusive). A diretora parece carregar uma espécie de culpa, ao mesmo tempo em que tenta transformar em imagem o fardo de seguir ao lado da irmã quando o autismo se agrava. Em paralelo ao distúrbio de uma está o sentimento da outra. “O nome dela é Sabine e o meu é Sandrine” seria um título apropriado.
.
Mas não se deve imaginar que o tom pessoal faça do filme uma obra egocêntrica. A relação sincera — nunca piedosa — das irmãs Bonnaire consegue imprimir um caráter instrutivo ao documentário. As gravações antigas mostram como Sabine era bonita e tinha vida social, apesar das implicações de um distúrbio que a família demorou a compreender (...)".

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

A luz vem

(Alguma "Luz na Escuridão" registrada por Mifaria, Rio de Janeiro, 2007)
.
E aquele que sabia, aos três anos disse:
.
"Titia, fale comigo! Estou com medo do escuro". E sua tia respondeu: "De que adiantaria? Você não pode ver-me". "Não importa", respondeu a criança, "se alguém falar, a luz vem".
.
(Sigmund Freud, "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", vol. VII, Obras Psicológicas Completas, Rio de Janeiro: Imago, 2006)

A luz vem

(Alguma "Luz na Escuridão" registrada por Mifaria, Rio de Janeiro, 2007)
.
E aquele que sabia, aos três anos disse:
.
"Titia, fale comigo! Estou com medo do escuro". E sua tia respondeu: "De que adiantaria? Você não pode ver-me". "Não importa", respondeu a criança, "se alguém falar, a luz vem".
.
(Sigmund Freud, "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", vol. VII, Obras Psicológicas Completas, Rio de Janeiro: Imago, 2006)

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

o teu olhar

(Leonardo Medeiros e Helena Ranaldi em “A Música Segunda”, de Marguerite Duras, direção de José Possi Neto, em cartaz no Teatro Maison de France)
.
Segui pela Beira Mar.
Não lembro ao certo como cheguei ali, mas segui pela beira mar.
Ao virar a esquina, pela janela do carro, avistei um grande cartaz anunciando “A Música Segunda”, de Marguerite Duras.
Me lembrei do teu olhar.
Chorei.
[Mas amanhã estarei lá.]
.
(O Estado de S. Paulo online, Caderno 2, matéria de Roberta Pennafort, publicada em 08.ago.09)

"E o teu olhar era de doloroso adeus
O fim de um relacionamento é o tema de A Música Segunda, de Marguerite Duras, dirigida por José Possi Neto, no Rio.

.
Um homem e uma mulher se apaixonam e se casam. Moram num hotel por três meses até se mudarem para a casa nova. Com o convívio, a relação desmorona. Vem a separação. Três anos depois, o reencontro, no hall do mesmo hotel, logo depois da assinatura do divórcio. A conversa que se segue é intensa, reveladora, dolorosa - mas necessária. Ainda existem o amor e o desejo, só que os dois têm consciência da impossibilidade da relação.
.
Assim se desenrola A Música Segunda, peça da escritora francesa de origem asiática Marguerite Duras que está em cartaz no teatro da Maison de France, no Rio, com direção de José Possi Neto. Leonardo Medeiros é Michel Nollet e Helena Ranaldi, Anne-Marie Roche, um casal que se une por se amar demais, e acaba se separando pelo mesmo motivo.
.
"Eles não conseguem esquecer as cicatrizes porque continuam se amando. É uma história universal, arquetípica, de todo casal que se separa. Fiquei fascinado pelo texto, porque a autora não dá um caminho. Não existe uma mensagem", avalia Medeiros. "Eu li o texto e não tive dúvida alguma de que queria fazer a peça. Sempre tive sorte porque meus personagens têm relações muito intensas. As relações humanas me interessam muito, acho importante falar disso", diz Helena. Tanto para ela quanto para ele é o primeiro contato com a obra de Marguerite Duras para teatro.
.
O público viu os atores juntos recentemente, na novela da TV Globo A Favorita. Medeiros era o "prefeito corno" e Helena, a esposa adúltera. Embora entre os cônjuges franceses também haja a questão da traição, a relação aqui é bem diferente. Em certo momento, surge a frase: "Vamos amar menos as outras pessoas." Para Medeiros, trata-se da vontade de viver amores menos passionais. "Esse casal se casou muito jovem. Para mim, é como se essa frase fosse um chamado para um amor mais sereno.
.
"Possi ressalta a modernidade do texto. "É muito provocante para mim como encenador. É quase uma colagem de cenas do cotidiano que vão construindo um universo de sensações. Há muitos anos não pegava um texto assim." Para mostrar ao espectador as emoções escondidas do homem e da mulher, o amor e a paixão não-realizados, o diretor, entusiasta do "teatro-dança", leva ao palco dois bailarinos, que, posicionados atrás de uma tela transparente, por vezes são como alter egos das personagens; noutras, são imagens refletidas no espelho, ou, ainda, sombras.
.
Nascida em 1914, Marguerite, escritora, roteirista e diretora de cinema, escreveu A Música em 1965 e adicionou uma segunda parte 20 anos depois - daí o título A Música Segunda. A produtora Lulu Librandi assistiu à montagem com Fanny Ardant no papel de Anne-Marie em 1996, ano da morte da autora. Ficou encantada com a força do texto, mas só conseguiu adquirir seus direitos quase dez anos depois".

(Teatro Maison de France PSA Peugeot Citroën, Av. Presidente Antônio Carlos 58, Centro, Rio de Janeiro, de quinta a domingo, até 27 de setembro)

o teu olhar

(Leonardo Medeiros e Helena Ranaldi em “A Música Segunda”, de Marguerite Duras, direção de José Possi Neto, em cartaz no Teatro Maison de France)
.
Segui pela Beira Mar.
Não lembro ao certo como cheguei ali, mas segui pela beira mar.
Ao virar a esquina, pela janela do carro, avistei um grande cartaz anunciando “A Música Segunda”, de Marguerite Duras.
Me lembrei do teu olhar.
Chorei.
[Mas amanhã estarei lá.]
.
(O Estado de S. Paulo online, Caderno 2, matéria de Roberta Pennafort, publicada em 08.ago.09)

"E o teu olhar era de doloroso adeus
O fim de um relacionamento é o tema de A Música Segunda, de Marguerite Duras, dirigida por José Possi Neto, no Rio.

.
Um homem e uma mulher se apaixonam e se casam. Moram num hotel por três meses até se mudarem para a casa nova. Com o convívio, a relação desmorona. Vem a separação. Três anos depois, o reencontro, no hall do mesmo hotel, logo depois da assinatura do divórcio. A conversa que se segue é intensa, reveladora, dolorosa - mas necessária. Ainda existem o amor e o desejo, só que os dois têm consciência da impossibilidade da relação.
.
Assim se desenrola A Música Segunda, peça da escritora francesa de origem asiática Marguerite Duras que está em cartaz no teatro da Maison de France, no Rio, com direção de José Possi Neto. Leonardo Medeiros é Michel Nollet e Helena Ranaldi, Anne-Marie Roche, um casal que se une por se amar demais, e acaba se separando pelo mesmo motivo.
.
"Eles não conseguem esquecer as cicatrizes porque continuam se amando. É uma história universal, arquetípica, de todo casal que se separa. Fiquei fascinado pelo texto, porque a autora não dá um caminho. Não existe uma mensagem", avalia Medeiros. "Eu li o texto e não tive dúvida alguma de que queria fazer a peça. Sempre tive sorte porque meus personagens têm relações muito intensas. As relações humanas me interessam muito, acho importante falar disso", diz Helena. Tanto para ela quanto para ele é o primeiro contato com a obra de Marguerite Duras para teatro.
.
O público viu os atores juntos recentemente, na novela da TV Globo A Favorita. Medeiros era o "prefeito corno" e Helena, a esposa adúltera. Embora entre os cônjuges franceses também haja a questão da traição, a relação aqui é bem diferente. Em certo momento, surge a frase: "Vamos amar menos as outras pessoas." Para Medeiros, trata-se da vontade de viver amores menos passionais. "Esse casal se casou muito jovem. Para mim, é como se essa frase fosse um chamado para um amor mais sereno.
.
"Possi ressalta a modernidade do texto. "É muito provocante para mim como encenador. É quase uma colagem de cenas do cotidiano que vão construindo um universo de sensações. Há muitos anos não pegava um texto assim." Para mostrar ao espectador as emoções escondidas do homem e da mulher, o amor e a paixão não-realizados, o diretor, entusiasta do "teatro-dança", leva ao palco dois bailarinos, que, posicionados atrás de uma tela transparente, por vezes são como alter egos das personagens; noutras, são imagens refletidas no espelho, ou, ainda, sombras.
.
Nascida em 1914, Marguerite, escritora, roteirista e diretora de cinema, escreveu A Música em 1965 e adicionou uma segunda parte 20 anos depois - daí o título A Música Segunda. A produtora Lulu Librandi assistiu à montagem com Fanny Ardant no papel de Anne-Marie em 1996, ano da morte da autora. Ficou encantada com a força do texto, mas só conseguiu adquirir seus direitos quase dez anos depois".

(Teatro Maison de France PSA Peugeot Citroën, Av. Presidente Antônio Carlos 58, Centro, Rio de Janeiro, de quinta a domingo, até 27 de setembro)

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Ainda sobre o preço

(Fotografia de Melissa Bivar, Rio de Janeiro, inverno de 2008)
.
Diálogo 1:
Ele: vc ainda tem raiva de mim?
Ela: Não. Só tinha raiva qdo a gente brigava... e um um pouco depois que a gente se afastou tb.
Ele: o que eu fiz contra vc?
Ela: Não quis me amar.
Ele: vc percebeu?
Ela: Sim.
Ele: acho que é pq vc implicava muito comigo...
Ela: Pode ser...
Ele: mentira. vc sempre foi muito amorosa. talvez não fosse tão chata se eu quisesse te amar.
Ela: Sei lá... mas falando nisso, não sei se já te disse - e se não disse vou falar agora -, você foi uma pessoa muito importante na minha análise... tá, na minha vida - sem medo de falar!
Ele: não disse.
Ela: Vc foi o primeiro homem que não deu o que eu queria receber e essa frustração foi fundamental pra um start... Eu sempre quis te agradecer por isso, de verdade.
Ele: aeeee. obrigado, mas eu não fiz nada.
Ela: Fez sim.
Ele: o q?
Ela: Nada, ora.
Ele: ahh... e por não querer fazer nada...
Ela: Fez.
.
Diálogo 2:
Ela: blá blá blá blá blá blá blá blá blá...
Amigo: Estamos falando de amor?
Ela: Sim! Estou lhe falando do preço que se paga para sustentar determinados relacionamentos. Sintomas.
Amigo: Você está lacaniana demais. O amor custa caro mesmo...

Ainda sobre o preço

(Fotografia de Melissa Bivar, Rio de Janeiro, inverno de 2008)
.
Diálogo 1:
Ele: vc ainda tem raiva de mim?
Ela: Não. Só tinha raiva qdo a gente brigava... e um um pouco depois que a gente se afastou tb.
Ele: o que eu fiz contra vc?
Ela: Não quis me amar.
Ele: vc percebeu?
Ela: Sim.
Ele: acho que é pq vc implicava muito comigo...
Ela: Pode ser...
Ele: mentira. vc sempre foi muito amorosa. talvez não fosse tão chata se eu quisesse te amar.
Ela: Sei lá... mas falando nisso, não sei se já te disse - e se não disse vou falar agora -, você foi uma pessoa muito importante na minha análise... tá, na minha vida - sem medo de falar!
Ele: não disse.
Ela: Vc foi o primeiro homem que não deu o que eu queria receber e essa frustração foi fundamental pra um start... Eu sempre quis te agradecer por isso, de verdade.
Ele: aeeee. obrigado, mas eu não fiz nada.
Ela: Fez sim.
Ele: o q?
Ela: Nada, ora.
Ele: ahh... e por não querer fazer nada...
Ela: Fez.
.
Diálogo 2:
Ela: blá blá blá blá blá blá blá blá blá...
Amigo: Estamos falando de amor?
Ela: Sim! Estou lhe falando do preço que se paga para sustentar determinados relacionamentos. Sintomas.
Amigo: Você está lacaniana demais. O amor custa caro mesmo...

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Mariposa e Lamparina

Entrando de sola na segunda estrofe, Lenine vem andando, Lenine vem crescendo, descendo e se aproximando de sua Bela-Fera...
Vida ardendo.
Crepitando.


.
Eu vim plantar meu castelo
Naquela serra de lá
Onde daqui a cem anos
Vai ser uma beira-mar
.
Vi a cidade passando,
Rugindo, através de mim
Cada vida era a batida
Dum imenso tamborim
Eu era o lugar, ela era a viagem
Cada um era real, cada outro era miragem
.
Eu era transparente, era gigante,
Eu era a cruza entre o sempre e o instante,
Letras misturadas com metal
E a cidade crescia como um animal
Em estruturas postiças,
Sobre areias movediças,
Sobre ossadas e carniças,
Sobre o pântano que cobre o sambaqui
Sobre o país ancestral
Sobre a folha do jornal
Sobre a cama de casal onde eu nasci
.
Eu vim plantar meu castelo
Naquela serra de lá
Onde daqui a cem anos
Vai ser uma beira-mar
.
A cidade
Passou me lavrando todo
A cidade
Chegou me passou no rodo
Passou como um caminhão
Passa através de um segundo
Quando desce a ladeira na banguela
Veio com luzes e sons
Com sonhos maus, sonhos bons
Falava como um Camões
Gemia feito pantera
Ela era...
Bela... fera
.
Desta cidade um dia só restará
O vento que levou meu verso embora
Mas onde ele estiver, ela estará:
Um será o mundo de dentro,
Será o outro o mundo de fora
.
Vi a cidade fervendo
Na emulsão da retina
Crepitar de vida ardendo,
Mariposa e lamparina
A cidade ensurdecia,
Rugia como um incêndio
Era veneno e vacina
.
Eu vim plantar meu castelo
Naquela serra de lá
Onde daqui a cem anos
Vai ser uma beira-mar
.
Eu pairava no ar, e olhava a cidade
Passando veloz lá embaixo de mim
Eram dez milhões de mentes
Dez milhões de inconscientes
Se misturam... viram entes
Os quais conduzem as gentes
Como se fossem correntes
Dum rio que não tem fim
.
Esse ruído
São os séculos pingando...
E as cidades crescendo e se cruzando
Como círculos na água da lagoa.
E eu vi nuvens de poeira
E vi uma tribo inteira
Fugindo em toda carreira
Pisando em roça e fogueira
Ganhando uma ribanceira
E a cidade vinha vindo...
A cidade vinha andando
A cidade intumescendo:
Crescendo... se aproximando
.
Eu vim plantar meu castelo
Naquela serra de lá
Onde daqui a cem anos
Vai ser uma beira-mar...
.
("Lá vem a Cidade", de Lenine e Bráulio Tavares, faixa do álbum Labiata, 2008)
Vida ardendo na canção.
Crepitando no palco.
Espetáculo que eu conheço. Reconheço!
Da platéia eu pago para assistir.

Mariposa e Lamparina

Entrando de sola na segunda estrofe, Lenine vem andando, Lenine vem crescendo, descendo e se aproximando de sua Bela-Fera...
Vida ardendo.
Crepitando.


.
Eu vim plantar meu castelo
Naquela serra de lá
Onde daqui a cem anos
Vai ser uma beira-mar
.
Vi a cidade passando,
Rugindo, através de mim
Cada vida era a batida
Dum imenso tamborim
Eu era o lugar, ela era a viagem
Cada um era real, cada outro era miragem
.
Eu era transparente, era gigante,
Eu era a cruza entre o sempre e o instante,
Letras misturadas com metal
E a cidade crescia como um animal
Em estruturas postiças,
Sobre areias movediças,
Sobre ossadas e carniças,
Sobre o pântano que cobre o sambaqui
Sobre o país ancestral
Sobre a folha do jornal
Sobre a cama de casal onde eu nasci
.
Eu vim plantar meu castelo
Naquela serra de lá
Onde daqui a cem anos
Vai ser uma beira-mar
.
A cidade
Passou me lavrando todo
A cidade
Chegou me passou no rodo
Passou como um caminhão
Passa através de um segundo
Quando desce a ladeira na banguela
Veio com luzes e sons
Com sonhos maus, sonhos bons
Falava como um Camões
Gemia feito pantera
Ela era...
Bela... fera
.
Desta cidade um dia só restará
O vento que levou meu verso embora
Mas onde ele estiver, ela estará:
Um será o mundo de dentro,
Será o outro o mundo de fora
.
Vi a cidade fervendo
Na emulsão da retina
Crepitar de vida ardendo,
Mariposa e lamparina
A cidade ensurdecia,
Rugia como um incêndio
Era veneno e vacina
.
Eu vim plantar meu castelo
Naquela serra de lá
Onde daqui a cem anos
Vai ser uma beira-mar
.
Eu pairava no ar, e olhava a cidade
Passando veloz lá embaixo de mim
Eram dez milhões de mentes
Dez milhões de inconscientes
Se misturam... viram entes
Os quais conduzem as gentes
Como se fossem correntes
Dum rio que não tem fim
.
Esse ruído
São os séculos pingando...
E as cidades crescendo e se cruzando
Como círculos na água da lagoa.
E eu vi nuvens de poeira
E vi uma tribo inteira
Fugindo em toda carreira
Pisando em roça e fogueira
Ganhando uma ribanceira
E a cidade vinha vindo...
A cidade vinha andando
A cidade intumescendo:
Crescendo... se aproximando
.
Eu vim plantar meu castelo
Naquela serra de lá
Onde daqui a cem anos
Vai ser uma beira-mar...
.
("Lá vem a Cidade", de Lenine e Bráulio Tavares, faixa do álbum Labiata, 2008)
Vida ardendo na canção.
Crepitando no palco.
Espetáculo que eu conheço. Reconheço!
Da platéia eu pago para assistir.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Feras do real

(Charge de Leo Cullum publicada em 18.set.06 no The New Yorker, in "The New Yorker Cartoons - Terapia", Rio de Janeiro: Editora Desiderata, 2009)
.
"Estou ali na sala [ou no quarto, ou na jaula...], e ninguém sequer me reconhece."

Feras do real

(Charge de Leo Cullum publicada em 18.set.06 no The New Yorker, in "The New Yorker Cartoons - Terapia", Rio de Janeiro: Editora Desiderata, 2009)
.
"Estou ali na sala [ou no quarto, ou na jaula...], e ninguém sequer me reconhece."

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Transferência

(Charge de William Steig publicada em 08.jan.1955 no The New Yorker, in "The New Yorker Cartoons - Terapia", Rio de Janeiro: Editora Desiderata, 2009)
.
Já tinha visto o anúncio em uma revista da TAM, em uma dessas viagens de última hora, mas só o encontrei na Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema, na saída da sala de exibição do filme "Palavra (en)cantada", numa tarde cinzenta, depois de tomar um café expresso dos mais gostosos do mundo...
.
Rolei, comprei e recomendo.
[O filme, o livro e o café em Ipanema.]

Transferência

(Charge de William Steig publicada em 08.jan.1955 no The New Yorker, in "The New Yorker Cartoons - Terapia", Rio de Janeiro: Editora Desiderata, 2009)
.
Já tinha visto o anúncio em uma revista da TAM, em uma dessas viagens de última hora, mas só o encontrei na Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema, na saída da sala de exibição do filme "Palavra (en)cantada", numa tarde cinzenta, depois de tomar um café expresso dos mais gostosos do mundo...
.
Rolei, comprei e recomendo.
[O filme, o livro e o café em Ipanema.]

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Não importa

(Chico Buarque de Holanda fotografado por Shana Reis, FLIP, Paraty, 2009)

"Mesmo que os romances sejam falsos como o nosso
São bonitas, não importa
São bonitas as canções
Mesmo sendo errados os amantes
Seus amores serão bons".

(Trecho de “Choro Bandido”, Chico Buarque de Holanda e Edu Lobo, álbum “Paratodos”, BMG, 1993)

Não importa

(Chico Buarque de Holanda fotografado por Shana Reis, FLIP, Paraty, 2009)

"Mesmo que os romances sejam falsos como o nosso
São bonitas, não importa
São bonitas as canções
Mesmo sendo errados os amantes
Seus amores serão bons".

(Trecho de “Choro Bandido”, Chico Buarque de Holanda e Edu Lobo, álbum “Paratodos”, BMG, 1993)

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

O amor comeu

(Fotografia de Flávia Assis, Piacatuba, Minas Gerais, 2008)

"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte".

(João Cabral de Melo Neto, "Os Três Mal-Amados" in "João Cabral de Melo Neto - Obras Completas", Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.59)

O amor comeu

(Fotografia de Flávia Assis, Piacatuba, Minas Gerais, 2008)

"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte".

(João Cabral de Melo Neto, "Os Três Mal-Amados" in "João Cabral de Melo Neto - Obras Completas", Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.59)

domingo, 2 de agosto de 2009

Andanças


(Poesia capturada por esta blogueira na cidade de Teresópolis, hoje à tarde)
Caro Senhor,
Eu havia subido a serra especialmente para ouvir Lenine cantar Sonhei, Paciência, Solidão, naquele festival de inverno, mas logo que cheguei à cidade descobri que os ingressos estavam esgotados.
Descobri que para mim não haveria mais cantoria, não haveria mais acordes de guitarra, nem festa, mas me dei conta de que estava em viagem. Havia escolhas a fazer.
E fiz. Há muito tempo. Não lembro quando. Acho que foi antes de entrar no carro. Antes de pegar a estrada. Antes de subir a serra.
Foi pela beleza da vista, pelo vento na cara, o cheiro de mato, a graça das an-danças, a risada depois do "cacete!" que segue cada tropeço, o calorzinho do sol tímido nas bochechas geladas, a lingua roxa de Carbenet Sauvignon. Escolhi viver e fui ao teu encontro.
Foi de repente. Num instante. Você surgiu naquela praça e nos falou de amor. Do amor mais precioso, mais raro e inspirador de todos: o amor pela vida.
Ignorando toda a maldade, contrariando toda a ignorância, tuas saudades se transformaram em movimento bem diante dos meus olhos. Teus lamentos em cadência. Tuas dores em ritmo. Tua dança solitária e benfazeja verteu em poesia para a vida.
A felicidade estava ali, naquele instante. Era tua. Era a minha.

Andanças


(Poesia capturada por esta blogueira na cidade de Teresópolis, hoje à tarde)
Caro Senhor,
Eu havia subido a serra especialmente para ouvir Lenine cantar Sonhei, Paciência, Solidão, naquele festival de inverno, mas logo que cheguei à cidade descobri que os ingressos estavam esgotados.
Descobri que para mim não haveria mais cantoria, não haveria mais acordes de guitarra, nem festa, mas me dei conta de que estava em viagem. Havia escolhas a fazer.
E fiz. Há muito tempo. Não lembro quando. Acho que foi antes de entrar no carro. Antes de pegar a estrada. Antes de subir a serra.
Foi pela beleza da vista, pelo vento na cara, o cheiro de mato, a graça das an-danças, a risada depois do "cacete!" que segue cada tropeço, o calorzinho do sol tímido nas bochechas geladas, a lingua roxa de Carbenet Sauvignon. Escolhi viver e fui ao teu encontro.
Foi de repente. Num instante. Você surgiu naquela praça e nos falou de amor. Do amor mais precioso, mais raro e inspirador de todos: o amor pela vida.
Ignorando toda a maldade, contrariando toda a ignorância, tuas saudades se transformaram em movimento bem diante dos meus olhos. Teus lamentos em cadência. Tuas dores em ritmo. Tua dança solitária e benfazeja verteu em poesia para a vida.
A felicidade estava ali, naquele instante. Era tua. Era a minha.